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O contrário da escrita incorpora-nos.

(...)  A “Bisa” lambia-me os selos das encomendas dos livros, fazia-me a cama e limpava a merda do gato Ajax da sua caixinha cor de rosa. Eu escrevia, escrevia, escrevia pelos dias fora, e de resto era normal, afinal, vivia fora do mundo real. Pensava muito em sexo, muito mesmo. Sexo! Enfim, na pornografia mais abjecta maioritariamente, ou em erotismo avulso em dias melhores, e na mistura confusa que ambos me faziam. Pensava nas mulheres que se deitaram comigo nas melhores noites, e naquelas com as quais gostaria de me ter deitado se estivesse acordado. O balanço era desequilibrado. Sobretudo nos nomes. E começava aí a confusão. Lembrava-me de quando uma amiga (já se me olvida o seu nome) me aconselhara um livro erótico, ela disse erótico, não pornográfico. Meu Deus! Pornográfico nunca, que os inválidos não tem direito à pornografia natural do mundo: Era o “Duas Vidas sem Importância”, do Cristóvão Altuna, (disto lembro-me). Então, pedi a um primo meu, o Albino, que mo comprasse em se

Restauração

"Risquei o último fósforo e estou agora vazia, não esperando sequer o deserto. Posso de novo sublinhar os livros sem pensar noutros olhos, numa vontade que não coincida; como quem se despe de portas abertas, luzes acesas, buracos na roupa, indiferente ao desejo de vizinhos e espelhos. Sou finalmente o único fantasma da minha vida inteira." Inês Dias,  in "Um raio ardende e paredes frias"  averno, 2013

Escrever,escrever,escrever..morrer.

"Escreveu um drama: disseram que se julgava Shakespeare Escreveu um romance: disseram que se julgava Proust Escreveu um conto: disseram que se julgava Chekhov  Escreveu um diário: disseram que se julgava Pavese  Escreveu uma despedida: disseram que se julgava Cervantes  Deixou de escrever: disseram que se julgava Rimbaud Escreveu um epitáfio: disseram que se julgava defunto." Augusto Monterroso - escritor guatemalteco (texto encontrado por si em um cemitério)

Textos Devolvidos VIII

(...) Remédios cultiva um jardim suspenso em casa. Através de um sistema que envolve muitas cordas, muitos pregos e muitos vasos, debruçam-se gerânios, begónias e bromélias do seu tecto. A cozinha era o último bastião de vida na casa ancestral dos Bruno, e fazia questão de a manter assim. Um raminho de salsa espreita por cima do armário do pão e dos pratos. Um pessegueiro anão frutifica entre a pia e o fogão. As folhas concorrem com o detergente da louça e com o bico do gás. - Aquilo nunca uso, - explica com desdém. – O Luís não me deixa. É o seu pessegueiro de estimação. – Nos anos mais férteis, os frutos escorrem pelas portas dos armários e no centro da cozinha, e Remédios está bem ciente que o pessegueiro padece de uma doença terminal, que já não lhe permite ser um pessegueiro orgulhoso, por isso, só lhe apara as folhas mortas e recolhe a podridão dos frutos deixados ao abandono. - Não tenho esperança nesta árvore caduca. Nasceu frágil, morrerá frágil. E se morrer, morreu. Nã

Textos Devolvidos V

(...) Aqui em casa há um pátio, cobre-o um verde murcho por todos os lados; heras, madressilvas, pés de feijão-verde e tantos, tantos arbustos, todos secos e mirrados por falta de luz e de água. Pelo meio estão as canas beges e escamadas que o meu pai trouxe de um campo.  Não se alimentam em condições os pobrezinhos, nenhum deles. Ao centro, sobrevivem dois limoeiros, tristemente secos também, despidos de qualquer amarelo. O meu pai pôs dois chapéus gigantes em cima dos limoeiros para eu poder visitar o pátio de vez em quando e observar o vai-e-vem atarantado das formigas. A minha mãe não gostou nada disto. Diz que as árvores não são gente para terem chapéus, que as formigas não são nada tontas e que os meninos como eu, deveriam era ficar dentro dos ninhos, resguardados.  Depois dos limoeiros, e depois do muro, fica a doca do Libânio, que, por ser feita de pedras cinzentas tem sempre luz em abundância.  Tenho tanta pena das pedras. É mesmo uma chatice isto da luz ser quente.

Textos Devolvidos IV

.III O Banquete do Jardineiro Em Junho de oitenta e cinco comecei a trabalhar no "resgate" do jardim da Ermelinda Sameiro e Sá. A sua casa era grande, verde e antiga. Na frente havia um pátio quadrado, quase nu, nas traseiras, aquele jardim de tesouros onde noite e dia corria um rio pelo meio. Foi sobretudo um processo de o habitar... habitar e perceber, mais pressentir talvez, o sentido orgânico de tão grande espaço, de um verde inteiriço cercado por uma orquestra de pequenas cores, de notas altas, aqui e ali.  Mal abri o portão de ferro, baixei-me e levei um torrão de terra à boca, para descobrir-lhe a razão da mortandade. Nessa altura ainda pressentia as coisas pelos sentidos todos, como quem joga xadrez sozinho depois do jantar, só pelo gosto suave de cometer pequenas tolices e não as achar grande coisa. Agora, já não o faço. Já não consigo. Ela tirou-me isso, e depois ainda me dizia: “Ó homem pára de chinfrinar. Que coisa. Tens lá necessidade de estar sempre a

Perguntar não ofende.

Pergunto-me se ainda existirão editores valentes, impregnados daquela invulgar audácia que só cabe aos verdadeiros iconoclastas. Editores atirados a fugirem dos mercados e da necessidade de se sistematizar tudo ao ínfimo tostão da mais valia. Pergunto-me se ainda existirão pessoas assim, que liderem uma editora, ou que trabalhem numa. Pessoas assim que ainda se atrevam a ler blogs com trinta e cinco seguidores, que se deparam com um excerto como este que aqui apresento e que sintam curiosidade em vez de lástima. Pergunto tanta coisa em uma só frase que se calhar já os  afugentei... (...) O vento baixava dos telhados nas manhãs de Abril. E as nuvens ficavam lá no alto à espera de que o bom tempo as fizesse descer para o pátio. Enquanto isso ficava vazio o céu azul, deixava que a luz caísse toda no jogo do vento removendo a poeira e batendo nos postigos como o  assobio dos amoladores de facas. - Estás na mesma, que bom, fica assim. Nunca mudes meu filho, nunca. – Diz-me ela

Coisas da mesma amálgama masoquista

Anda um homem, vivo, por pouco ainda vivo e extraordinariamente ainda cheio de vontade, a choramingar constantemente a mesma baba e ranho, lavados a seco para um nada higienizado de absoluto desdém, para depois assistir a isto: o saque do espólio dos mortos, ainda mortos e certamente já sem vontade alguma de publicar seja o que for. - Estão, tipo...mortos! Certo? Mas não, a altura é exacta, é sempre exacta ao ritmo da necessidade dos ganhos possíveis, da família, da editora, do raio que os parta, nunca dos fieis leitores, que esses são carneiros puros com moeda infinita incrustada na lã inocente do bom gosto. E mais, o texto tem de ser alto, levantado, sublime, pois é do Bolaño valha-me deus, um tipo que escrevia bem como o caralho mas que poucos serão os que, com genuína honestidade se chegarão à frente para descrever a emoção orgástica da leitura das duríssimas e dificilíssimas 1063 páginas do seu épico romance " 2666 " - ' A vida humana inteira está dentro destas

Textos Devolvidos II

(...) Gabriel era um palerma, sim, um débil pamonha cheio de fraquezas emotivas. O pai dele era o seu inverso, o Hermenegildo acredito que fosse selvagem, sem dúvida. Os gonzos descambados da porta assim o provavam. Como é que alguém  não selvagem conseguiria vergar aquelas dobradiças num empeno, com a simples força do seu corpo? - Além disso, havia também a história, sim, aquela misteriosa história que o Gabriel, a muito custo nos contou certa vez, sobre ele.  Não era uma história sobre o senhor Almeida entendam, mas tão-somente a história do bravo Hermenegildo Almeida. – Há aqui uma notória diferença. - Onde este, dotado de um sangue mais vermelho que a maioria, e com dezassete anos apenas, fugira de casa sem qualquer aviso, rumando a Espanha, para se juntar aos retalhos das brigadas internacionais, os soberanos republicanos que lutavam contra o fascismo do General Francisco Franco. Gabriel não era exactamente um bom contador de histórias, de modo que tivemos de fazer as conta

Que Alguém Saiba que Passaram Cinco Anos...

"ESTE SILÊNCIO É SÓ MEU" Nunca quiseste o meu silêncio,  e eu mantive-me afastado sem nada para te dizer, e gritei para dentro sem ter nosso, um ponto interior de dor. Nunca quiseste saber-me sem voz, mas sabes, o que instantaneamente me dói, não são essas distâncias, que ficaram nestes anos todos a crescer, arrumadas entre os medos que não gritamos juntos, e os sonhos que nem transpirei na tua pele. O que verdadeiramente me dói são os bons silêncios, que nunca habitamos lado a lado. Porque o silêncio só pode ser bem partilhado, com os que amamos até à loucura. Só ele é dádiva perfeita que não pede nada. Nada pediste. Sim, tu não pediste este silêncio, e mesmo assim, nada fizeste para te defenderes. E depois que ficar calado seja loucura? Maior loucura é deixar fugir o lugar onde deitar a cabeça, e esperar que a madrugada lentamente desfaça, todos os segredos altos e todos os barulhos, que como homem ansiei fazer saltar desse

Aves do Paraíso

(...) Mais de cem aves do paraíso voaram mesmo agora do céu dos teus olhos.  Nada de especial,  não precisas de te alarmar. A lareira  ainda  crepita por igual círculos de música fria libertada. ........................................ Apeteceu-me só uma pausa para contar estes sonhos de pelúcia.  Que o meu paraíso, sozinho não poderá jamais voar  sem haver presentes olhos assim, como os teus. ......................................... No decurso da noite, o peso do ar apanhou-nos na cama s ombreada riamos em intervalos separados pelo calor em len çóis  povoados de nuvens dois barcos acabados de chegar acolhedores, sem ju ízo de pedir à noite algum chamamento triste. .......................................... D e olhos abertos, por favor. não tardes mais a cruzares esses olhos que tanto preciso com o rascunho do meu paraíso. Que os amantes nem veem s ó querem sempre ser dois pontos presentes de nenhum lugar. ...........

Fazer excertos é mais fácil que morrer.

(...)  Assim te vi no princ ípio, onde nada nunca est á onde é suposto. Eras uma casa feita em segredo. Todas as casas têm baús misteriosos cheios de cartas de amor em porões de saudade,  escondidos nos escaninhos mais profundos, entre as peças inacabadas de dominós de alabastro,  as colchas garridas da tia louca,  os acessórios do sexo esquecido,  a parafernália do animal morto,  os vídeos descartados ao inferno do digital,  as decorações de natais estéreis,  os livros por publicar... Tantos livros por publicar. Mas, só as cartas de amor, meu amor, nossas cartas,  tantas cartas de Amor desperdiçadas, nesse poço desigual, sobrevivem. Sabes... Em cartas de amor esquecidas nem os bichos vermes ou as coisas encravadas, ou a mais ténue esperança conseguem sobreviver de todas as possíveis maneiras que a literatura lhes reserva. As cartas de amor são a mais nua e democrática escrita inútil já inventada. Ficam para ali, eternas a serem perfei

Poesia Fantasma

Novo Livro, para ser esquecido de igual forma... " (...)  E ste poema sobre o que s ó a mim me interessa daqui para diante, quando os estranhos j á  o tiverem lido, receber á  uma chamada de telefone do exterior. Caro senhor: parece que as ondas j á se  foram todas, sem entender o que o senhor diz fique mais em terra, sossegado que o mar, picado contra o seu favor n ão quer saber de nada do que o senhor quis. Assim, na soma geral das coisas onde se junta a sua pequena litania em contram ão é tudo inútil e sem juízo, como rid ícula é  toda a sua express ão. Acredito, por ém, que os s eus sonhos como os meus, serão a passagem para dois que comprei para o para íso, ou quiçá... n ão! (...) " "Todos os Fogos são Fevereiro" Poesia - 2017 - AutoPublicada. https://www.bubok.pt/livros/11520/Todos-os-Fogos-sao-Fevereiro

...É preciso não esquecer que ainda se escrevem Romances

(...) "A noite está tomada por estranhas sombras, compridas e escuras.   Chegou a ser cruel a minha observação, no rigor com que deixou a nu as minhas deficiências mais visíveis. Levantei-me do chão quente e fui para casa, para comprar tempo, antes que alguém me visse ali e me deitasse desaforos por mim abaixo. Fiquei a olhar o quadro anterior que ainda tinha fresco na memória, até me ocorrer um pensamento obsceno, o mais belo de todos: E se tivesse sido León Xótsia o assassino da gata? Se tivesse sido ele também o precursor daquele incêndio? E se fosse efectivamente, aquele meu único amigo, a mais deliciosa e perversa criatura deste prédio? – Passou-me um arrepio eléctrico pelo corpo todo. – Como seria bom se isto fosse mesmo verdade, i maginar-nos realmente deuses, ou um deus a fazer por mim, para variar, em vez de contra mim, como se a maravilha da última decisão fosse só a consequência da sua vontade. Imagino que tudo seria perfeito, mesmo que, tão precipitadamente, ent