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Textos Devolvidos IV


.III
O Banquete do Jardineiro

Em Junho de oitenta e cinco comecei a trabalhar no "resgate" do jardim da Ermelinda Sameiro e Sá. A sua casa era grande, verde e antiga. Na frente havia um pátio quadrado, quase nu, nas traseiras, aquele jardim de tesouros onde noite e dia corria um rio pelo meio. Foi sobretudo um processo de o habitar... habitar e perceber, mais pressentir talvez, o sentido orgânico de tão grande espaço, de um verde inteiriço cercado por uma orquestra de pequenas cores, de notas altas, aqui e ali. 
Mal abri o portão de ferro, baixei-me e levei um torrão de terra à boca, para descobrir-lhe a razão da mortandade. Nessa altura ainda pressentia as coisas pelos sentidos todos, como quem joga xadrez sozinho depois do jantar, só pelo gosto suave de cometer pequenas tolices e não as achar grande coisa.
Agora, já não o faço. Já não consigo. Ela tirou-me isso, e depois ainda me dizia: “Ó homem pára de chinfrinar. Que coisa. Tens lá necessidade de estar sempre a gemer? Pareces um disco riscado.” E eu ria-me, como um perdido. Agora não, já me rio melhor.
Entre a tristeza dos botões de rosa diminuídos pelo abandono, dos canteiros de buxos, húmidos e sombrios, das japoneiras a competirem em cor com as roseiras e do vasto domínio de fetos ressequidos, havia ali um coração pousado na superfície de tantas coisas descoloridas pela sua morte prematura, que redimia a coisificação daquele mundo (quase) perdido. 
De repente, o pavor por todas as minhas veias, um calafrio incerto que me atrapalhou. Como se cá dentro se abrisse um corredor de medo, por onde escorressem todas as correntes de ar do mundo. Nunca fui homem de grandes premonições. Se houvesse sido, em pequeno, nunca me teria deitado com a minha avó, para acordar de manhã com uma defunta.
Do jardim da Ermelinda trouxe a haste e a raiz de uma planta trepadeira que tem umas flores pequenas, vermelhas e amarelas, que parecem miniaturas de candeeiros chineses. Tão bonitas que o mais reles poeta lograria evocá-las como prova definitiva da existência de Deus. Em Maio caíram-lhe uns frutos verdes como bolotas que nem aos pássaros interessaram, nem aos pássaros nem a ninguém, eram mais veneno que bolota. Trouxe-a comigo na mesma e plantei-a no meu próprio jardim, entre as magnólias e os meus pensamentos mais difusos. O resultado não foi perfeito. Ficou ali qualquer coisa pendurada, quando já exausto, me fui sentar no cadeirão da sala, ao lado do telefone. Um momento antes deste tocar, mudando-me a vida para sempre. (...)

Excerto do conto "O Banquete do Jardineiro" de uma compilação de cinco contos 2013/2014 intitulados "Estórias de Amor para Desempregados" - Rejeitados por todas as editoras.

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