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Perguntar não ofende.


Pergunto-me se ainda existirão editores valentes, impregnados daquela invulgar audácia que só cabe aos verdadeiros iconoclastas. Editores atirados a fugirem dos mercados e da necessidade de se sistematizar tudo ao ínfimo tostão da mais valia. Pergunto-me se ainda existirão pessoas assim, que liderem uma editora, ou que trabalhem numa. Pessoas assim que ainda se atrevam a ler blogs com trinta e cinco seguidores, que se deparam com um excerto como este que aqui apresento e que sintam curiosidade em vez de lástima. Pergunto tanta coisa em uma só frase que se calhar já os afugentei...




(...)

O vento baixava dos telhados nas manhãs de Abril. E as nuvens ficavam lá no alto à espera de que o bom tempo as fizesse descer para o pátio. Enquanto isso ficava vazio o céu azul, deixava que a luz caísse toda no jogo do vento removendo a poeira e batendo nos postigos como o assobio dos amoladores de facas.
- Estás na mesma, que bom, fica assim. Nunca mudes meu filho, nunca. – Diz-me ela com o olhar enevoado.
- Você também mamã, - Não estávamos nada, estávamos horríveis, muito magros e infelizes - muito embora ainda não me tenha respondido à pergunta que lhe fiz várias vezes.
- Muito bem meu filho, eu respondo-te. É de vitela. Estás satisfeito? Vai ser Jardineira de vitela. Com cenouras e chouriço, como o teu pai gostava e tu também. 
- Vai cortar as batatinhas pequenas também?
- Sim, claro que vou. – Suspirou fundo. – Já fico satisfeita por nem quereres saber mais.
- Ah... O pai sabia o que era bom. – Afirmo, ignorando-a completamente. - E eu também, suponho, está-me no sangue. – Ela sorri-me cheia de mistérios, enquanto passava a faca por água e depois a enxugava no avental. 
- O Angelino veio-me contar que ficou muito aborrecido contigo. – Prossegue, com um tom de voz completamente distinto. - Disse-me que lhe tinhas prometido começares hoje com os poetas ingleses românticos, e que depois, nem sequer apareceste. – Diz-me seriamente - Não sei bem o que ele quis dizer com os poetas românticos, mas sei que ele assim não te paga, Nicolau. Sabes que a sua reforma é minguada, e ele não é homem de meias medidas. Caso não lhe agrade a tua atitude, ele não te paga mesmo.
- Oh, Mãe! – Exclamei.
- O que foi agora?
- Não se lembra que a Graça me arrastou para a casa dela na Segunda? Encontrei-a, no dia da dita ‘catástrofe’, fez agora ano e pico, e temo-nos visto com frequência desde aí. Que precisava muito de me falar etecetera. Eu contei-lhe isto. Fiquei fora de mim, claro. Nunca faltei a um compromisso antes. Nem sei porque me vem falar do assunto, sabendo o quanto me perturba.
- Tão estranho, isto da Luzia, não achas? – persiste ela - O raio da gata quase nunca saía da casa da Florbela. Era tão gorda e pachorrenta a bichana. Quem lhe terá feito tal coisa. Partir-lhe o pescoço daquela maneira grotesca e depois escalpá-la feito um coelho? Ai. Que horror! Deus Nosso Senhor nos Salve! - Um choro inaudível corria-lhe a pele.
- Mamã, não comece.
- Eu juro-te que ouvi coisas terríveis vindas lá de cima. E aquele cheiro, Nico. E a neblina pestilenta que pairava entre o oitavo e o sétimo andar. Bendita Nossa Senhora! Aquilo eram coisas tiradas de um conto do Poe. Puro terror! Do Edgar Poe. Sabes, o Poe? – Repetiu como em um eco.
Aquela sua voz era um minério puro. Porque a voz da mamã era assim, não lhe descia da cabeça até à boca, flutuava de consistência no decurso de uma conversa, passando da rudeza do aço à moleza dúctil do chumbo num instante.
- Sim mamã, eu sei exactamente quem foi o Poe. A questão é, se você o saberá ao certo, ou se está apenas a repetir nomes que o pai mencionou em tempos, para me impressionar. Ou mesmo... Ah, esta discussão é inútil. Podemos não falar mais do raio da gata?
Tu não te recordas Nicolau? Ajudaste a ajeitar as cadeiras ao longo do corredor do pátio para que as pessoas que vieram vê-lo esperassem a vez. Ficaram vazias. E o teu pai sozinho, no meio dos círios. A sua cara pálida e os seus dentes brancos mal aparecendo entre aquele roxo grande dos lábios, endurecidos pela morte.
- Mamã, pare. Já lhe pedi várias vezes para não me contar essas tolices da sua cabeça.
- Tolices, Nico? Tolices! Nós os dois ali, rezando rezas intermináveis, sem que ele nos pudesse ouvir, tudo perdido debaixo da noite. Tinhas o teu fatinho da comunhão, engomado estreito e ele o fato do casamento, com os punhos das mangas puxados para que as mãos parecessem novas, cruzadas sobre seu peito morto, seu velho peito amoroso, onde eu dormi em cima durante anos...
- Cale-se! – Gritei. – Acabe com esses disparates. O meu pai não está ali enterrado. Está no Alto de S. Simão, no cemitério, em Conde Santo. Pare, mãe, pare, isso aleija. (...)


"A Ausência dos Pássaros"
Romance (por publicar)

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