Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de novembro 21, 2021

Tudo branco pelas paredes negras.

  Ouvir o álbum branco dos Beatles enquanto encarreiro cigarro atrás de cigarro é um bom artifício de contrição contra a apatia que muitas vezes a vida nos impõe. O álbum branco aqui é meramente inconsequente, como qualquer outro o seria. Mais me importa a nuvem de tabaco que produzo e que a tudo se agarra. Aquelas garras de águia nevoeirentas trazem-me a distância da memória junto ao peito. O meu pai fumava em casa. O meu pai fumava na sua oficina de alfaiate. O meu pai fumava imenso, fumou até quase à minha idade actual, quando um médico lhe ditou uma sentença da qual não se pode esquivar. Depois desse dia, o meu pai jamais prendeu um cigarro nos lábios.  Porém, até então, o meu pai fumou muito. Sempre me pareceu um prazer simples que o agradava. E, nunca sequer, suspeito, ouviu o álbum branco dos Beatles enquanto baforava qualquer coisa e bebia muitas outras. Com ele na oficina, fumavam o meu tio, tanto ou mais do que ele fumava, tanto, tanto que o matou pela garganta, ou pelo peito

Longe dos sonhos dos Anjos

  (...) tempo demais andei espantado por nada, caído em um chão sem bons meninos. Fugi do normal recreio do grato porto, como no escuro fogem da luz os animais. Acordei, e juro que não o merecia. Pois, nessa mesma noite já deitada por detrás dos olhos bovinos, vi sonhos prostituíndo-se à revelia das suas zonas de conforto. (...) in: "Aquelas Vistas de Pedra" 2021

O Café dos Felizes

  Entrei naquele café fugido do frio lá de fora.  Foi ocasional, condicional quiçá, não fui para ali atirado, mas entrei ao resguardo, sobretudo. Pareceu-me tão acolhedor; duas ou três pessoas, cada uma sem telemóveis nas mãos, sem Tv, música ambiente mansa e fluída, sorrisos e aromas que nos sentam gratos.  O dono acercou-se e transportou-me para casa, sem imposições de falas comerciais. Pedi um chá e ele acenou com a cabeça. Quem é que ainda faz isto? Ao meu lado uma rapariga da minha idade olhava o horizonte e começava a mexer o seu café com leite com a colherzinha alongada. O líquido quase transbordava da chávena empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio. Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. O café com leite girava, girava com uma cova no meio. Um redemoinho. Eu encontrava-me sentado mesmo ali. O café tinha quatro pessoas, cinco com o dono. A rapariga continuava a mexer, a mexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima.  Fitei-a de tal manei

Sorri (mesmo assim)

  “Sorri quando a dor te torturar E a saudade atormentar Os teus dias tristonhos vazios Sorri quando tudo terminar Quando nada mais restar Do teu sonho encantador Sorri quando o sol perder a luz E sentires uma cruz Nos teus ombros cansados doridos Sorri vai mentindo a sua dor E ao notar que tu sorris Todo mundo irá supor Que és feliz” João de Barros

O Neiva junto ao Ave

Recordo-me bem do Cine-Teatro Neiva por si mesmo, o velho cinema de alcatifa puída e manchas de esperma e cuspo ressequido nos cromados. Fui duas vezes ameaçado de morte ali dentro, por mor de ser um piçinhas de Azurara que lavava as mãos depois de urinar e pedia as coisas "por favor". O Papel de parede descascava aqui e ali, fruto da humidade e os lavatórios fediam a uma cinefilia sem paralelo por toda a Vila do Conde. Recordo-me da sua pureza simplista e utilitária, bem antes de cair em desuso, ser esquecido e abandonado à ruína e por fim renascido, como uma fénix ímpia, que serve alguns em vez de todos.  É quiçá contraditório isto, eu sei, mas hão-de perdoar-me o saudosismo 'porco' de amar um cinema mais comum, mais humano, mais feio, em detrimento de um "Teatro Municipal" que brilha mais nas lajes de mármore do que nos conteúdos programáticos. - E mesmo que assim fosse? - Muitos anos depois, já se havia constituído um bom caminho para os amantes do cin