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Textos Devolvidos V


(...)
Aqui em casa há um pátio, cobre-o um verde murcho por todos os lados; heras, madressilvas, pés de feijão-verde e tantos, tantos arbustos, todos secos e mirrados por falta de luz e de água. Pelo meio estão as canas beges e escamadas que o meu pai trouxe de um campo. 
Não se alimentam em condições os pobrezinhos, nenhum deles. Ao centro, sobrevivem dois limoeiros, tristemente secos também, despidos de qualquer amarelo. O meu pai pôs dois chapéus gigantes em cima dos limoeiros para eu poder visitar o pátio de vez em quando e observar o vai-e-vem atarantado das formigas. A minha mãe não gostou nada disto. Diz que as árvores não são gente para terem chapéus, que as formigas não são nada tontas e que os meninos como eu, deveriam era ficar dentro dos ninhos, resguardados. 
Depois dos limoeiros, e depois do muro, fica a doca do Libânio, que, por ser feita de pedras cinzentas tem sempre luz em abundância. 
Tenho tanta pena das pedras. É mesmo uma chatice isto da luz ser quente. E se houver por lá pedras Albinas, cheias de sardas encarnadas, como aquelas da banca da cozinha? Pedras fantasma. – Já imaginaram? Coitadas! 
Sinto tanta pena das pedras. A minha mãe diz-me ser uma grande tolice ter pena de alguma coisa que nem é bicho, nem é gente. Nunca a vi ter pena dos limoeiros, ou dos arbustos já agora. Estes também não são bichos ou gente, e mesmo assim, sentem o peso do calor como eu e como as pedras, e quem sente pena por todos eles? Eu, pois. Só eu. Sinto mesmo muita pena daquelas pedras. O que lhes vale é a companhia do meu barco.
Sim, por certo esta será a altura ideal para vos contar.
Ah, não vos tinha dito ainda? – Desculpem então toda a maçada desta lengalenga da luz e dos sapos e dos leões e dos chapéus e das pedras, desculpem-me até o transtorno de estar aqui a falar de mim. 
É que há um barco poisado a seco na doca do Libânio. E não é um barco qualquer, não, senhor. – É o meu barco! 
Já me tentei aproximar dele muitas vezes, mas começa-me sempre a nascer um exército de gotas de suor a marchar-me pelo corpo todo. Sinto-me como aqueles frangos assados que a minha mãe tira do forno, nos dias de festa, que escorrem água pelas coxas como se saíssem de uma sauna.
O barco, pois. 
Aquele barco é o meu tesouro mais precioso, sem que alguma vez lhe tenha conseguido sequer tocar.
O meu pai lembrou-se então de construir um corredor feito de panos brancos, opacos, que avançam sombras, passo a passo, desde a porta do pátio até ao muro, no final do mesmo, para que eu pudesse sair à rua e atirar migalhas às formigas. Que grande ideia, para mim e para as formigas também. Só que apareciam sempre as malvadas das pombas e roubavam-nas; às migalhas, e as formigas também. (...)
(...) Chegou o Natal mais uma vez, e todos os anos, só pedia um presente: um barco igual àquele, ou aquele mesmo.
- De acordo – diz-me o meu pai, - compramo-lo quando começar o ano que vem.
- Não! – Respondo-lhe a fingir bravura. – Isso foi o que me disseste no ano passado, e no ano anterior também. Não, não! Já chega de mentiras! Quero agora. Quero um barco igual àquele, ou aquele mesmo.
- Em Janeiro filho, em Janeiro vemos isso. – Insiste ele.
- Mas pai, - suspirei – Ele está tão sozinho, e eu quero um barco com asas. Um barco voador como aquele, para subir acima do Sol. – Apontei-lhe a doca ali ao lado. – Igual àquele ali, vês? Não achas perfeito que ele esteja só e que eu queira ser seu amigo?
- Um barco voador Salvador? Mas que grande tolice! Para que queres tu um barco num sítio onde não há água? – Pergunta-me a minha mãe. 
Não tive mais que lhes dizer. Já me habituara à ideia de esperar acontecimentos extraordinários, uma vez que me parecia aborrecido e estúpido que a vida tivesse de seguir o seu curso habitual, sem que fizéssemos nada contra isso. Desci a correr pelo corredor de panos brancos e apontei-lhes:
- Estão a ver? – Tossia desalmado com a emoção. - Quero um barco como este, este aqui, vêm? – Mantive o braço muito esticado como um mastro. – Ou um igual a este! – Estendi o dedo indicador aprumado a direito, feito um pau alisado na continuação da mesma madeira que o braço, que por pouco, por pouco, alinhado com os meus olhos, quase tocava na ponta da vela do barco. – Tolice é o que vocês dizem! Não preciso de água sequer, de água nenhuma. Ele voa, sabem? Voa! Só quero o barco mesmo. Este, ou um igual a este. Não entendem que deixarei de vez de ser o menino fantasma, se puder voar? (...)

Excerto de "O Lugar onde Começa a Chuva" - 2016
Conto infanto-juvenil recusado por todas as editoras da área e por dois prémios literários.

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