não chamem logo as funerárias, cortem-me as veias dos pulsos pra que me saibam bem morto, medo? só que o sangue vibre ainda na garganta e qualquer mão e meia me encha de terra a boca, sei de quem se tenha erguido, de pura respiração, do fundo da madeira, saibro, roupa, gôtas de orvalho ou cêra, ornatos, espadanas, lágrimas, últimas musicas, não é como no escuro o trigo que ressuscita, sei sim de quem despedaçou as tábuas e ficou entre caos e nada com o sangue alvoraçado nos braços e nas têmporas, que se não pare nunca entre as matérias intransponíveis, cortem-me cerce o sangue fresco, que a terra me não côma vivo, [excerto] Herberto Helder, in “Ofício cantante – poesia completa” assírio & alvim, 2009