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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro 21, 2018

Praia dos Banhos

Todas as estátuas de sal vão desaparecendo perante o rumor do mar. Até me lembro do exacto instante diferido da sua queda. A manhã estava pronta. O Sol na extensa espera da aurora, que não era feia nem bonita. Havia tantos suicidas na família que cheguei a duvidar que fossem todos aparentados. Pequenas borboletas insónias trazendo às costas as consciências e afogando-as no escuro. Todos eles estátuas seguindo viagem na desenvoltura do salitre. Quando mergulhei a cabeça, pareceram-me todos mortos, mas eram só tios e primos afastados por muralhas em meu redor. Acabaram todos em tempestades e fúrias e tristezas e vergonhas heróicas, com as cabeças entre as mãos e o sal a fecha-los nas suas cavernas para sempre. Venho sorver ar às nuvens da madrugada e trago ainda um rasto de vozes agarrado ao cabelo como algas desencantadas. Vozes rasteiras que rompem por momentos o ataúde do mar. O tempo e a areia salgada esqueceu-os. Mesmo eu só me recordo de uma bruma envidraçada de braços cúmplices

Ser Artista já foi mais Fixe!

Muito pouco se admite do que, embora possa ser ilegal, é sobretudo absolutamente irrazoável.       ( Para mim pelo menos .) Uma destas coisas é o trabalho dos artistas que não se negoceiam a recibos, nem a chupa-chupas, pedras coloridas, alvíssaras de abraço, ou gratificações arvoradas com belos corações pulsantes na redes sociais, artistas que trabalham a custo zero. Pior, a menos um, pois só assim são considerados, pelo valor negativo da sua despesa. Pessoas extraordinárias que passam por baixo das linhas só porque elaboram trabalhos criativos que não se embutem em qualquer caixinha nos impressos oficiais, e isto independentemente da área onde pairem. - Que são muitas mais do que se imagina - Assim que, estes fabulosos facínoras , estes delicados brutos , estes marialvas das artes, postos ou pondo-se na exclusão da rede, por assim dizer, muito além do vasto descampado da brutal fiscalidade, acabam, evidentemente como foras-da-lei. E ai de quem levante a voz em seu socorro! Outr

Uma guitarra a despertar a manhã

Bert Jansch - "Angie"

(Meditação debaixo da tília do Jardim.)

Recordar torna o mundo mais exacto com réguas de fumo, ângulos perfeitos de olhos nos astros  -- e a inocência daquele céu pardo das manhãs inconcretas que todos se lembram de ser azul e não verde para lhe chamarmos oceano ou folha de árvore. A realidade é mais confusão, máquina-doida-de-repetir sombras inconcluídas, bocas dependuradas nos ramos e nas corolas, destinos de morder o vento, narinas nas flores, conluio de pássaros com o sol, as plantas enganaram-se e deram rosas em vez de incêndios, construção da Cidade da Morte com pele e cal, ervas pisadas por espectros  -- e este cheiro tão bom a sonho que torna o mundo mais efémero e real. As aves nos fios telefónicos alimentam-se de palavras. José Gomes Ferreira Poesia .IV Portugália Editora 1970

Cruz

Dia 6 de Novembro chega às livrarias o novo livro do meu autor português contemporâneo favorito.  Ora, da forma como encaro as coisas, gastar-se dinheiro em livros é uma poupança sem contraponto. Uma anestesia permanente na ignorância. É como abrir uma conta na caixa de depósitos de um melhor futuro. - Enfim, melhor é deixar-me de lirismos - gosto mesmo muito do Afonso Cruz e não me enguiço nada em partilhar isto convosco.

As Crónicas do Senhor Barbosa XI

O Senhor Barbosa às vezes faz um esforço e vê o mundo como se este fosse novo, com os traços nítidos de um recém-nascido. Cheio das cores e formas vivas da primeira vez. É esquisito não lhe causar mais estranheza olhar-se ao espelho, e ver-se tão jovem que poderia quase ser filho de si mesmo. Deixa passar um breve silêncio, depois diz devagar, de si para si: "Ninguém ouve ninguém, não sabes? Que aprendeste com a vida, homem?" "Pobres tolos existem em todo o lado, vestem-se de gente mas são melhores do que vulgares pessoas, parecem flores constantemente a florir - acrescentou - pelo menos na minha juventude havia-os aos magotes nesta nossa terrinha. Enchiam as ruas desse mesmo fingimento com que as pessoas de agora se entretêm a evocá-los." Já então correra de boca em boca, e mesmo em algumas notas de rodapé no último pasquim que o reconhecia, que o Senhor Barbosa havia endoidecido pela morte que o cobriu dos pés à cabeça e depois o soltou em um soluço, reje

Saudades de ver boas Séries... II

No próximo dia 11 de Novembro, o mundo irá certamente promover a celebração do centésimo aniversário do último dia desta guerra. A décima primeira hora, do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês em que a humanidade finalmente gritou basta!  Contudo, tão insensata guerra (Não serão todas assim? São pois!) foi onde o Homem se apercebeu de que as guerras já não eram aquela coisa galante e nobre de outrora, que nos impulsionavam a elas com um sorriso garboso nos lábios e uma atitude desprendida de medos no espírito. Esta guerra mostrou-nos a nossa bestialidade oculta, o nosso grotesco lado mais cruel e então terá sido dito: "Ser esta a guerra para terminar todas as guerras.." - Sabemos bem que não o foi, e sabemos também, que todos nós, como membros da raça humana, não nos permitimos a libertação deste desolador móbil de 'se fazer a guerra', de nos atirarmos à nossa própria destruição e desgraça, porque, a guerra, move-nos e ganha-nos e perde-nos muito mais em si