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Coisas da mesma amálgama masoquista


Anda um homem, vivo, por pouco ainda vivo e extraordinariamente ainda cheio de vontade, a choramingar constantemente a mesma baba e ranho, lavados a seco para um nada higienizado de absoluto desdém, para depois assistir a isto: o saque do espólio dos mortos, ainda mortos e certamente já sem vontade alguma de publicar seja o que for. - Estão, tipo...mortos! Certo?
Mas não, a altura é exacta, é sempre exacta ao ritmo da necessidade dos ganhos possíveis, da família, da editora, do raio que os parta, nunca dos fieis leitores, que esses são carneiros puros com moeda infinita incrustada na lã inocente do bom gosto. E mais, o texto tem de ser alto, levantado, sublime, pois é do Bolaño valha-me deus, um tipo que escrevia bem como o caralho mas que poucos serão os que, com genuína honestidade se chegarão à frente para descrever a emoção orgástica da leitura das duríssimas e dificilíssimas 1063 páginas do seu épico romance "2666" - 'A vida humana inteira está dentro destas páginas ardentes.' diz o Independent. E diz muito bem, mas este foi um, talvez o melhor, talvez não, dos muitos livros que Roberto Bolaño deitou a publicar pois assim considerou ser pertinente e necessário fazê-lo. E muito bem. Diabos me levem, muito agradeço a existência deste homem e a sua verve e criatividade.
Agora, vir a lume, (inusitadamente claro...), volta e meia os restos que, imagina-se, nem tampouco em vida quis o dito autor ver impressos, e com estes 'puzzles' como assim os define o autor deste artigo, criar novos livros e novas receitas é gritantemente escandaloso. Sem dúvida que isto será mais um evento literário mítico, um outro unicórnio retirado a ferros do cu da magnificência, será? - Eu que nada sou, nem considerado nem dado nem recebido, aguardo ansioso o dia do meu passamento, tonto de emoção pela perspectiva de que desaparecido, talvez seja capaz de vir a ser escritor. Eu mesmo, nulidade assim atrás descrita, guardo quatro ou cinco textos em uma 'pen-drive', para depois sabem? Para aquela altura depois da vida onde, quiçá, finalmente alguém ligue os pontos e arrisque. Querendo dizer, "são estas as palavras que gostava de ver feitas páginas em um livro. Estas e mais nenhumas." Pois nada sei sobre o futuro, sou um nabo com uma mente demasiada nublada para o marketing pós-morte. Mas sei uma coisa; aquilo que escrevi com muito trabalho e que lamento não ter nunca sido publicado. Aquilo que fui escrevendo, porque, como escritor, nunca paro de escrever, estará à altura, levantada, talvez até subliminada sem que ninguém o saiba até então, e por isso muito própria para a publicação póstuma. O resto, serão tentativas, excertos, volúpias... deixem-nas estar quietas em um nada. Não quero nem nunca quis arriscar dizer que toda a sílaba que deito ao 'word' é ouro puro. Jamais.

Depois digam-me frases feitas sobre esperança e perseverança mas afastem-se logo de seguida, sim? Afastem-se para uma distância segura pois só me apetece cuspir impropérios pela boca fora.

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