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Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro 27, 2019

Um artista com uma câmera

ARTUR PASTOR [1922-1999]

O Incidente de Plutão (Parte II)

Continuação... Xavier sonhara o corpo de uma loura por semanas, nos intervalos em que se convencia a si mesmo que a amava porque sim. Mas que desacato. Não tinha heroísmos em part-time para dar a ninguém e por isso se pusera a fazer teatro no fim do trabalho como forma de não se maçar a si mesmo. Era um salto à vara espantoso, se de tantos lados que procurou socorro, este lhe chegasse através desta mulher. Doroteia, vista pelos seus olhos era a mulher mais bonita da cidade, e ai de quem o  contradissesse. Não era que o dissesse a ninguém, de todos os modos só se queria deitar com ela e deixar-se adormecer ao seu lado como uma fera amansada. Era tudo matéria de sonhos. - E o que foi que tiveste de fazer pelo teu pai? - Arriscou a pergunta. Não foi pronta a sua resposta, apesar de se perceber na comissura dos seus lábios os indícios de um longo diálogo consigo mesma - precisamos de falar sem rodeios - ouviu depois o rapaz dizer. - Isto é, se queres que fique e te escute. Quer

A "Helena" não tem Culpa

Ler, contra a tempestade. Ler a meu favor. Ler porque os livros não precisam de mim para nada, mas desejo-os tanto. Ler é felicidade interna bruta, conceito maravilhoso em qualquer lugar, tempo ou clima. Vivem lá umas pessoas, imaginem. Malucos, que nunca se cansam. Porque são malucos? Claro. Como é que um maluco se podia cansar? - A "Helena" não tem culpa, tenho eu. Georges Seurat "Man Reading" 1884

Escrever,escrever,escrever..morrer.

"Escreveu um drama: disseram que se julgava Shakespeare Escreveu um romance: disseram que se julgava Proust Escreveu um conto: disseram que se julgava Chekhov  Escreveu um diário: disseram que se julgava Pavese  Escreveu uma despedida: disseram que se julgava Cervantes  Deixou de escrever: disseram que se julgava Rimbaud Escreveu um epitáfio: disseram que se julgava defunto." Augusto Monterroso - escritor guatemalteco (texto encontrado por si em um cemitério)

Saudades de ver bons filmes (XX)

Alfonso Cuarón produziu um pequeno milagre: fazer-nos acreditar que um filme esteticamente anacrónico e desgastado narrativamente é uma obra-prima. Roma tem muitas virtudes, mas também muitos defeitos e cada um, depois de o ver, saberá se o primeiro supera o último ou vice-versa. Entre os defeitos, aponto como irremediável o seu esteticismo memorialista, a repetição do deslocamento lateral da câmara torna-se até maçadora, e mesmo a reconstrução da época, que a princípio surpreende favoravelmente, logo se transforma em um mero exibicionismo da capacidade de produção (a cena do incêndio florestal é a mais feia e mais justa de todo o filme). Entre as virtudes, ressalvo a recuperação de Leo Dan em uma das canções mais refinadas de seu período mexicano e a viagem final ao mar, que cumpre exatamente a função narrativa e poética que o filme precisava para fechar. As paisagens de Roma são muito semelhantes às paisagens romanas de Fellini (especialmente as grandes aberturas que são

A Morte Saiu à Rua

Rui Caeiro. 1943-2019.

Cortar em Seis o Pão

Versos heróico-familiares .III Houve um tempo  em que o meu pai trabalhava por turnos na fazenda na tesoura, giz e no cigarro campeão como um herói de acrobacia. Coração de aço, entretela feito asa vestida em madeira ancestral. O dinheiro era um osso que mal chegava para encher a concha de uma mão. Dormia com a minha mãe e a direito fazia a emenda dos dias de cristal. Há noite, chegava a casa e antes de se sentar à mesa sorria, como ninguém. .. A minha mãe esfregava do pescoço o torcicolo respiração e canto, o cheiro a frio de varrer a casa da rádio a água da cor da ferrugem e das camas, o vil cotão. Mulher indómita de perfume perfeito dir-se-ia uma planície formosa não inventada por flores. duas mãos papoilas, vermelho sangue e uns olhos de abismo aberto. Havia também, por perto, um gato  amarelo esgalgado pelo meu colo fogo de calor, amor, risos e pão. .. Sei de toda esta matéria de  embaraços mesmo no fim de quatro, fui eu quem soube primeiro vol

É só para uma estatística...

O meu filho diz que o blog hoje faz anos (não faz), mas fui saber como anda este mundo de saúde. Fiquei intrigado por saber serem mais os franceses e alemães que os portugueses a virem aqui parar. Não fico triste ou contente que os desígnios estatísticos de um algoritmo não são motivo para emoções fortes. Como eu gostava de saber que língua falam na "região desconhecida", apetecia-me agradecer-lhe com um abraço bem escrito.

Chove amor pelo mundo em chamas.

Receita  vintage   soul que se respira mais do que é hábito. Coisa mais coisa, inventam  grandeza às escondidas por aí, depois fazem-se carne cá dentro e rebentam-nos com os abismos do sono.   Lee Fields e Charles Bradley são dois virtuosos  de voz aberta dessa  impalpável matéria que  faz os deuses reaparecerem.  Um fogo fino como  a corrente que tudo  atravessa.  Entram nos  sítios vazios e nota a nota só deixam luz.

A rubrica da Madalena Patusca V

- Já terminaste - diz-me ele, visivelmente amedrontado. - Podes responder-me agora? Ainda ontem pensei há quanto tempo não vou ao Mosteiro, há quanto tempo não subo a pé até ao ponto mais alto da vila, onde sopra o vento na razão de quase voarmos e queima o sol sem que nos possamos dele proteger. Lá em cima só se deveria querer alegrias, êxtases profundos dentro dos carros embaciados, com aplausos e festança e orgasmos. Casamentos e baptizados. Comunhões evito, que me lembram funerais com crianças mal-vestidas. Também se morre de desespero lá em cima, esperanças mal dirigidas que falham o alvo e caem, lá de cima. Tantos enterros segui desde lá de cima. Poderá este ser mais um? Aprovei com um movimento. Arrumei a louça para o lado e levantei a cabeça ante o seu olhar fixo. - Isto é sério demais - respondi-lhe. - Esta nossa vida é como um livro apenas começado e com um "R" gigante, a vermelho, a cortar tudo de cima a baixo. Ontem pensei em matar-me. Em matar-me Ulisses

Era uma vez...na Venezuela

Um artigo muito interessante sobre a Venezuela, de Ferreira Fernandes, no DN do último Sábado. Parece quase uma história do próprio Garcia Marquez. " Dias mais tarde, em Caracas, um jovem barbeiro que fazia vídeos sobre rebeldes sem causa apresentou-me cangalheiros. Eu queria saber porque recusavam eles fazer velórios noturnos quando o morto era de gangues juvenis. Contaram-me: tornara-se hábito na juventude transviada levar o falecido para uma última ramboia pela noite de Caracas. " Pode ler o texto completo aqui .

O Incidente de Plutão (Parte I)

Sentia-se ainda o inexorável fedor a ossos moídos pelo ar, da antiga fábrica de sabão do fim da avenida, que fizera a última barra em Outubro de 1971. A grade era muito velha e estava quase toda coberta de glicínias. A porta, enferrujada, mexia-se à justa com a idade, rangendo. Na escuridão, brilhavam as poças da chuva recente. Via-se um quarto iluminado, mas o silêncio mais correspondia a uma casa sem quartos. Contornaram um jardim abandonado, coberto de mato, por uma viela que ladeava o terreiro lateral, semi-fechado e sustentado por colunas de ferro. Entrariam por aí. A casa era velhíssima, suas janelas davam para o quintal e ainda conservavam as grades coloniais; os grandes ladrilhos do piso eram certamente daquele tempo, pois sentia-se que estavam rachados, gastos ou partidos. Ouviu-se um clarinete: uma frase sem estrutura musical, lânguida, desarticulada e obsessiva. - Bem - disse Xavier -, pelo menos aqui está uma lâmpada. Julguei que nesta casa só haveria iluminação a velas.

Dia sim, dia não uma beleza antiga

Debbie Harry