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Textos Devolvidos VIII



(...)
  • Remédios cultiva um jardim suspenso em casa. Através de um sistema que envolve muitas cordas, muitos pregos e muitos vasos, debruçam-se gerânios, begónias e bromélias do seu tecto. A cozinha era o último bastião de vida na casa ancestral dos Bruno, e fazia questão de a manter assim. Um raminho de salsa espreita por cima do armário do pão e dos pratos. Um pessegueiro anão frutifica entre a pia e o fogão. As folhas concorrem com o detergente da louça e com o bico do gás. - Aquilo nunca uso, - explica com desdém. – O Luís não me deixa. É o seu pessegueiro de estimação. – Nos anos mais férteis, os frutos escorrem pelas portas dos armários e no centro da cozinha, e Remédios está bem ciente que o pessegueiro padece de uma doença terminal, que já não lhe permite ser um pessegueiro orgulhoso, por isso, só lhe apara as folhas mortas e recolhe a podridão dos frutos deixados ao abandono. - Não tenho esperança nesta árvore caduca. Nasceu frágil, morrerá frágil. E se morrer, morreu. Não vou sentir-me triste por causa de um pessegueiro. Tristes devemos sentir-nos pelas pessoas. 
  • As suas três filhas gémeas: Carlota, Emília e Ana Bruno – As irmãs Brontë de Santa Clara, como são conhecidas – tem por costume brincar perto do pessegueiro, ali mesmo, na cozinha. Gostam do calor e da luz, dos cheiros e sabores que estão impregnados nas paredes e nos armários dos copos, e também da firme mesa de carvalho sediada no centro daquele espaço, como uma ilha aromática, lanhada, passeiam-se sob ela, em cima dela, agarram-se às suas pernas como trepadeiras de carne e osso, fazendo daquela mesa e de toda a divisão o seu território de liberdade, com direito a bosque privativo e tudo.
  • A irmã mais velha, Felicidade, por vezes junta-se-lhes, mas perde o interesse muito depressa. Felicidade nasceu triste, perpassada por dores imaginárias e carregada de mudanças de humor que nunca suportavam a fantasia por muito tempo. Viveu animada por uns tempos apenas, quando Gabriel o Segundo ali ficou durante alguns dias.
  • Sempre que soava a campainha da porta, descia as escadas e vinha a correr pelo longo e escuro corredor, na ânsia desvairada de que ele tivesse retornado. Queria ser sempre a primeira a atender à porta, para o receber com um dos seus raros sorrisos. (...)

"Duas Vidas sem Importância"
Romance 2010
(Rejeitado por todas as editoras)

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