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Cortar em Seis o Pão


Versos heróico-familiares .III

Houve um tempo 
em que o meu pai trabalhava
por turnos na fazenda

na tesoura, giz e no cigarro campeão
como um herói de acrobacia.

Coração de aço, entretela feito asa
vestida em madeira ancestral.
O dinheiro era um osso que mal chegava
para encher a concha
de uma mão.
Dormia com a minha mãe
e a direito fazia a emenda
dos dias de cristal.
Há noite, chegava a casa
e antes de se sentar à mesa
sorria,
como ninguém.

..


A minha mãe esfregava
do pescoço o torcicolo

respiração e canto, o cheiro a frio
de varrer a casa da rádio
a água da cor da ferrugem

e das camas, o vil cotão.
Mulher indómita de perfume perfeito
dir-se-ia uma planície formosa
não inventada por flores.
duas mãos papoilas, vermelho sangue
e uns olhos de abismo aberto.
Havia também, por perto, um gato amarelo
esgalgado pelo meu colo

fogo de calor, amor, risos e pão.

..


Sei de toda esta matéria de embaraços

mesmo no fim de quatro, fui eu quem soube primeiro
voláteis corações imensos para onde a natureza
largou os instintos de borboletas
de asa presa
tatuadas com cicatrizes de tantos cansaços
Soube-o pelas calendas de um Fevereiro.

..


E à vista desarmada dir-se-ia: são tão felizes

os meus pais, os meus irmãos, eu e o caminho azul
da minha condição.
Até o gato que se foi num pasmo
vivia como nós, todos juntos aprendíamos a ser aprendizes
de braços feito aves, nesta sacrossanta união.
A dureza não alastrava como no rio pardacento
havia um cordão de árvores sólidas
e nenhum lamento
a cegar de amor a descendência.
Não podia ser. Que era proibida
a desolação.
Era só deles o segredo.
Jamais um filho crica ali sentiu fome ou medo.
Fosse qual fosse a noite que se acabasse
o dia seguinte seria um cobertor sempre aquecido.

O tempo foi largo na sua instância

e contou-me na memória cada instante
em letra aberta
como se crescer a recordar
fosse o meu posto.

Às vezes, de noite, ainda me desperta
brilhante
as inocentes lembranças da minha infância
pegaram-se em mim como os pássaros pelas redes
pois é para dentro que elas voam
para o porte altivo do meu rosto
que nunca foi meu, mas deles.

"Todos os Fogos são Fevereiro"
Poesia - 2017





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