Continuação...
Xavier sonhara o corpo de uma loura por semanas, nos intervalos em que se convencia a si mesmo que a amava porque sim. Mas que desacato. Não tinha heroísmos em part-time para dar a ninguém e por isso se pusera a fazer teatro no fim do trabalho como forma de não se maçar a si mesmo. Era um salto à vara espantoso, se de tantos lados que procurou socorro, este lhe chegasse através desta mulher.
Doroteia, vista pelos seus olhos era a mulher mais bonita da cidade, e ai de quem o contradissesse. Não era que o dissesse a ninguém, de todos os modos só se queria deitar com ela e deixar-se adormecer ao seu lado como uma fera amansada. Era tudo matéria de sonhos.
- E o que foi que tiveste de fazer pelo teu pai? - Arriscou a pergunta.
Não foi pronta a sua resposta, apesar de se perceber na comissura dos seus lábios os indícios de um longo diálogo consigo mesma - precisamos de falar sem rodeios - ouviu depois o rapaz dizer. - Isto é, se queres que fique e te escute. Queres...queres que fique? - Ela assume uma expressão desolada. - De outro modo, já sinto o dente a moer novamente. - Deu a si mesmo um piparote na bochecha abcessa. - Isto dói que se farta. O melhor é ir embora mesmo.
Fez uma pausa, mas Doroteia Barbosa continuou imperturbável. Depois, voltou a cabeça para ele. Foi um movimento quase imperceptível, mas que fez ranger as molas da cama. Havia no seu olhar, enquanto a acompanhava até à janela, uma espécie de fervor.
- Será que percebes Xavier, a quantidade de sofrimento que o mundo teve de produzir para existir um homem como o Ulisses Barbosa? Não percebes? Esta é uma família de loucos. Sabes quem viveu nesta casa, durante quarenta anos? O Adrianito dos Pascoais.
- O Louco?
- Devias saber que antigamente se costumava isolar um louco trancado em um quarto. O Adrianito é na verdade um louco manso, uma espécie de sem-abrigo sábio, e o seu encafuamento não foi voluntário. Foi o Barbosa quem o tirou daqui, aos pontapés, e ele a sorrir ainda por cima. Na rua sentia-se como um peixe dentro de água. Ainda hoje se sente assim.
- E o teu pai, que tipo de louco é que era?
- O meu pai viveu aqui fechado, sozinho com nove gatos, longos anos depois do divórcio e da morte frustrada. Muitas vezes penso no poder da circunstância, de um encontro no traçado da sua vida, que o terá levado a esse desespero. Sabes, o meu pai não era louco algum, só queria que os outros pensassem que era. Era mais fácil assim.
- Mais fácil? - Inquire o rapaz.
- Há qualquer coisa estranha no meu futuro - disse ela.
Em um gesto decidido, Xavier pegou-lhe na mão, examina-a ternamente, depois de a apertar.
Doroteia retirou a mão da dele, sem poder reprimir um momentâneo sentimento de depressão. - Deixa-me em paz - disse-lhe, sem se deter, empurrou-o de encontro à cabeceira da cama de onde saltou um pedaço podre de rococó. A seguir observou-o, longamente, como se observasse a sua própria imagem na sua ausência. Tratava-se de um olhar que se podia dizer neutro, fundamentalmente uma mirada calma, sem urgência ou fechamento. À luz terrível do meio-dia ela vê-o pela primeira vez. Acabrunhado, incerto, algo temeroso. A recordação deste momento era-lhe confusa. Um instante humilhante.
Encontrara, entre os papéis do pai, rascunhos de poemas e umas estranhas cartas por endereçar. Todas elas com letras diferentes, mas todas com a mesma assinatura: Plutão Geraldo. Cartas curtas e amareladas, em um papel quase amarrotado, tinta desbotada, como que a dissimular as emoções das palavras.
- Guardo-as todas comigo, sem tentar sequer desvendar o mistério por mim própria. Nunca lhas devolvi nem sequer lhe quis alguma vez perguntar a quem se destinavam. Concluí que nenhuma seria para a minha mãe, ou para mim. Até aí estou certa.
Mostra-as a Xavier que ficou desprovido de perguntas para lhe fazer.
Na rua, na frente da casa, um grito fino alarmou-os a ambos. Um lamento enrolado, contínuo, elevou-se e tão alto que os arrastou para lá. Depois parou, subitamente.
- O que é - gritou Xavier.
(Continua...)
(Continua...)
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