Avançar para o conteúdo principal

A rubrica da Madalena Patusca V


- Já terminaste - diz-me ele, visivelmente amedrontado. - Podes responder-me agora?
Ainda ontem pensei há quanto tempo não vou ao Mosteiro, há quanto tempo não subo a pé até ao ponto mais alto da vila, onde sopra o vento na razão de quase voarmos e queima o sol sem que nos possamos dele proteger. Lá em cima só se deveria querer alegrias, êxtases profundos dentro dos carros embaciados, com aplausos e festança e orgasmos. Casamentos e baptizados. Comunhões evito, que me lembram funerais com crianças mal-vestidas. Também se morre de desespero lá em cima, esperanças mal dirigidas que falham o alvo e caem, lá de cima. Tantos enterros segui desde lá de cima. Poderá este ser mais um?
Aprovei com um movimento. Arrumei a louça para o lado e levantei a cabeça ante o seu olhar fixo.
- Isto é sério demais - respondi-lhe. - Esta nossa vida é como um livro apenas começado e com um "R" gigante, a vermelho, a cortar tudo de cima a baixo. Ontem pensei em matar-me. Em matar-me Ulisses! Nunca, nem nos momentos mais longos da minha solidão alguma vez pensei em fazê-lo.
Ele cala-se muito tempo. Remói um choro para dentro que só se vê nos lábios.
- Faz um esforço. Sim, recorda-te da minha admiração geral perante a raridade que tu és, e daquela noite em que te falei como se isto fosse uma coisa a conservar, exterior à depressão, ao desespero. Exterior à morte. Uma coisa, quem sabe, que mais tarde poderíamos até contar às crianças...
- Crianças?
- Sim Ulisses, no fundo da minha ingenuidade, pensei até em ter filhos contigo. O sonho ficou-me de vigia a observar a chama da nossa vida a esmorecer nas palmas das tuas mãos..
- Foi bonito, isso que disseste agora.
- Cala-te! Já falaste que chegasse. Quiseste que te respondesse, estou a fazê-lo. Ouve-me até ao fim. Vai dar trabalho ficarmos vivos se isto continuar assim. Tu não te importas com nada e nem te importas que eu também não. Se cada dia para ti é um castigo, deverias abrir os olhos e ver que já não precisas de te castigar. Eu estou aqui e...bem, ainda não desisti totalmente de ti.
O Senhor Barbosa fechou os olhos até deixar vibrar dentro de si o clarim do toque de silêncio. Madalena levantou-se e pôs os braços fincados no topo da mesa. Ele despertou, sobressaltado. Colocava drogas de emergência na memória para se evadir daquele momento. A culpa era sua, sabia-o. E não acabara ainda de escutar as notícias. Ela silenciara-se por momentos e dedicara-se a decifrar palavras-cruzadas sob a lâmpada da sua confusa cabeça. Uma pomba acocorada junto à janela, lembrou-os a ambos, que ainda existia um mundo lá fora. Uma voz demasiado distante para ser real gritou um nome no horizonte, era o seu.
- Ulisses?
Ela voltou a falar e falou seguido durante dez minutos, sem nunca tropeçar nas palavras, surpreendida por um tropel de ideias que não cabiam nos moldes previstos sobre aquilo que as pessoas dela pensavam. O Senhor Barbosa, definitivamente desperto, acudiu a cada uma destas suas palavras. Como se as tivesse reconhecido vários séculos depois, enquanto as ia lendo em um livro que lhe era tão familiar. Madalena terminava assim: "Tens dormido mal - disse-lhe, e acrescentou com uma suave amargura - um destes Domingos amanhecerás velho e morto. É isso que tu queres, não é? Olha para isto?
- O que é?
- É uma fotografia nossa. Nós os dois, dias depois do Natal. - Levava sempre consigo aquela fotografia. Chegou a cortá-la nas extremidades para que coubesse na mala. - Achas que estas duas pessoas que aqui estão são uma mentira?
- Os Domingos são dias estranhos. - Responde-lhe ele.
Pulha!, sonhava em voz alta Madalena. Com os braços estendidos quis agarrar o que não estava no ar.
Numa manhã como aquela, o Senhor Barbosa havia compreendido por fim o mecanismo interior do seu suicídio falhado, muitos anos atrás. Não havia sido ele a falhar o encontro com a morte. Foi esta quem não o quis. Compreendia que ninguém realmente o queria de facto. Nem a morte, nem a sua filha, nem a sua antiga mulher, nem esta tampouco.
Ulisses? - Gritou ela por uma segunda vez.
Chuviscava agora sem ruídos, na janela da sala assobiava o afã do vento. Levantou-se da mesa e foi pôr-se ali a observar o mundo tumultuado lá fora. Comido que estava o silêncio, era preciso resgatá-lo às rotinas, para tudo se compor outra vez.
Madalena permaneceu rígida por alguns momentos junto à mesa da cozinha. Esfacelava aquela fotografia com uma secreta exasperação, enquanto prosseguia os seus pensamentos: "Hás-de mas pagar! Eu tiro-te a paz, arranco-te os olhos dessa janela. Não sairei jamais daqui até te enforcares de amor por mim".
Acabou vencida depois da grande batalha.
O Senhor Barbosa, ou comovido ou arrependido, sentiu o sangue a correr-lhe espesso e pegajoso nas veias, como o soro que escorre do queijo apartado no cincho. Uma palpitação assim foi o suficiente para o domesticar momentaneamente. Veio para o pé dela. Estava alagada em suor. Respirava pela boca. Parecia mais rápida a respiração do que o próprio bater do coração em febre. Ele abraçou-a e pediu-lhe desculpas em um sussurro.
Esgotadas as forças, a guerra sem tréguas tinha ficado para depois.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

Acerca de Anderson's...

Hollywood é um gigantesco cadinho demente de fumos e fogos fátuos. Ali se fundem todos os sonhos e pesadelos possíveis de se imaginar.  Senão, atentem, como mero exercício, neste trio de realizadores, que, por falta de melhor expressão que defina o interesse ou a natureza relevante deste post, decidi chamar-lhes apenas de os " Anderson's ". Cada um mais díspar que o outro, e contudo, todos " Anderson's ", e abundantemente prolíficos e criativos dentro dos seus géneros. Acho fascinante, daí querer escrever sobre eles e, no mais comum torpe da embriaguez, tentar encontrar alguma similitude entre eles, além do apelido; " Anderson ". Começarei por ordem prima de grandeza, na minha opinião, e é esta que para aqui interessa, não fosse este um blogue intrinsecamente pessoal onde explano tudo e mais qualquer coisa que me apeteça. Sendo assim, a ordem será do melhor para o pior destes " Anderson's ".  O melhor : Wes Anderson .  O do meio : Pau...

O discurso do Corvo.

Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu, voo ao acaso, sem saber por quem voar, por sobre rostos de carne, palha e infinito. Trago as mãos feitas num espesso breu, toldadas pela sede de te possuir e de te dar, o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito. As palavras, quando são poucas, sabem melhor, dizem tudo melhor, se forem poupadas. Abre os braços então, e recebe-as em teu seio, a secura desta terra já consome o sangue do meu terror. Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas, disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio. De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes, continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve. Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder, Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes, desta paixão que é dada, e que não se devolve, e que é minha e tua, porque assim tinha de ser! Casimiro Teixeira 2012