- Já terminaste - diz-me ele, visivelmente amedrontado. - Podes responder-me agora?
Ainda ontem pensei há quanto tempo não vou ao Mosteiro, há quanto tempo não subo a pé até ao ponto mais alto da vila, onde sopra o vento na razão de quase voarmos e queima o sol sem que nos possamos dele proteger. Lá em cima só se deveria querer alegrias, êxtases profundos dentro dos carros embaciados, com aplausos e festança e orgasmos. Casamentos e baptizados. Comunhões evito, que me lembram funerais com crianças mal-vestidas. Também se morre de desespero lá em cima, esperanças mal dirigidas que falham o alvo e caem, lá de cima. Tantos enterros segui desde lá de cima. Poderá este ser mais um?
Aprovei com um movimento. Arrumei a louça para o lado e levantei a cabeça ante o seu olhar fixo.
- Isto é sério demais - respondi-lhe. - Esta nossa vida é como um livro apenas começado e com um "R" gigante, a vermelho, a cortar tudo de cima a baixo. Ontem pensei em matar-me. Em matar-me Ulisses! Nunca, nem nos momentos mais longos da minha solidão alguma vez pensei em fazê-lo.
Ele cala-se muito tempo. Remói um choro para dentro que só se vê nos lábios.
- Faz um esforço. Sim, recorda-te da minha admiração geral perante a raridade que tu és, e daquela noite em que te falei como se isto fosse uma coisa a conservar, exterior à depressão, ao desespero. Exterior à morte. Uma coisa, quem sabe, que mais tarde poderíamos até contar às crianças...
- Crianças?
- Sim Ulisses, no fundo da minha ingenuidade, pensei até em ter filhos contigo. O sonho ficou-me de vigia a observar a chama da nossa vida a esmorecer nas palmas das tuas mãos..
- Foi bonito, isso que disseste agora.
- Cala-te! Já falaste que chegasse. Quiseste que te respondesse, estou a fazê-lo. Ouve-me até ao fim. Vai dar trabalho ficarmos vivos se isto continuar assim. Tu não te importas com nada e nem te importas que eu também não. Se cada dia para ti é um castigo, deverias abrir os olhos e ver que já não precisas de te castigar. Eu estou aqui e...bem, ainda não desisti totalmente de ti.
O Senhor Barbosa fechou os olhos até deixar vibrar dentro de si o clarim do toque de silêncio. Madalena levantou-se e pôs os braços fincados no topo da mesa. Ele despertou, sobressaltado. Colocava drogas de emergência na memória para se evadir daquele momento. A culpa era sua, sabia-o. E não acabara ainda de escutar as notícias. Ela silenciara-se por momentos e dedicara-se a decifrar palavras-cruzadas sob a lâmpada da sua confusa cabeça. Uma pomba acocorada junto à janela, lembrou-os a ambos, que ainda existia um mundo lá fora. Uma voz demasiado distante para ser real gritou um nome no horizonte, era o seu.
- Ulisses?
Ela voltou a falar e falou seguido durante dez minutos, sem nunca tropeçar nas palavras, surpreendida por um tropel de ideias que não cabiam nos moldes previstos sobre aquilo que as pessoas dela pensavam. O Senhor Barbosa, definitivamente desperto, acudiu a cada uma destas suas palavras. Como se as tivesse reconhecido vários séculos depois, enquanto as ia lendo em um livro que lhe era tão familiar. Madalena terminava assim: "Tens dormido mal - disse-lhe, e acrescentou com uma suave amargura - um destes Domingos amanhecerás velho e morto. É isso que tu queres, não é? Olha para isto?
- O que é?
- É uma fotografia nossa. Nós os dois, dias depois do Natal. - Levava sempre consigo aquela fotografia. Chegou a cortá-la nas extremidades para que coubesse na mala. - Achas que estas duas pessoas que aqui estão são uma mentira?
- Os Domingos são dias estranhos. - Responde-lhe ele.
Pulha!, sonhava em voz alta Madalena. Com os braços estendidos quis agarrar o que não estava no ar.
Numa manhã como aquela, o Senhor Barbosa havia compreendido por fim o mecanismo interior do seu suicídio falhado, muitos anos atrás. Não havia sido ele a falhar o encontro com a morte. Foi esta quem não o quis. Compreendia que ninguém realmente o queria de facto. Nem a morte, nem a sua filha, nem a sua antiga mulher, nem esta tampouco.
Ulisses? - Gritou ela por uma segunda vez.
Chuviscava agora sem ruídos, na janela da sala assobiava o afã do vento. Levantou-se da mesa e foi pôr-se ali a observar o mundo tumultuado lá fora. Comido que estava o silêncio, era preciso resgatá-lo às rotinas, para tudo se compor outra vez.
Madalena permaneceu rígida por alguns momentos junto à mesa da cozinha. Esfacelava aquela fotografia com uma secreta exasperação, enquanto prosseguia os seus pensamentos: "Hás-de mas pagar! Eu tiro-te a paz, arranco-te os olhos dessa janela. Não sairei jamais daqui até te enforcares de amor por mim".
Acabou vencida depois da grande batalha.
O Senhor Barbosa, ou comovido ou arrependido, sentiu o sangue a correr-lhe espesso e pegajoso nas veias, como o soro que escorre do queijo apartado no cincho. Uma palpitação assim foi o suficiente para o domesticar momentaneamente. Veio para o pé dela. Estava alagada em suor. Respirava pela boca. Parecia mais rápida a respiração do que o próprio bater do coração em febre. Ele abraçou-a e pediu-lhe desculpas em um sussurro.
Esgotadas as forças, a guerra sem tréguas tinha ficado para depois.
Comentários
Enviar um comentário
Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.