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O Incidente de Plutão (Parte I)


Sentia-se ainda o inexorável fedor a ossos moídos pelo ar, da antiga fábrica de sabão do fim da avenida, que fizera a última barra em Outubro de 1971. A grade era muito velha e estava quase toda coberta de glicínias. A porta, enferrujada, mexia-se à justa com a idade, rangendo.
Na escuridão, brilhavam as poças da chuva recente. Via-se um quarto iluminado, mas o silêncio mais correspondia a uma casa sem quartos.
Contornaram um jardim abandonado, coberto de mato, por uma viela que ladeava o terreiro lateral, semi-fechado e sustentado por colunas de ferro. Entrariam por aí. A casa era velhíssima, suas janelas davam para o quintal e ainda conservavam as grades coloniais; os grandes ladrilhos do piso eram certamente daquele tempo, pois sentia-se que estavam rachados, gastos ou partidos.
Ouviu-se um clarinete: uma frase sem estrutura musical, lânguida, desarticulada e obsessiva.
- Bem - disse Xavier -, pelo menos aqui está uma lâmpada. Julguei que nesta casa só haveria iluminação a velas.
- Ah, nem vais acreditar. O Senhor Barbosa só usava lamparinas. Dizia que a eletricidade fazia mal à vista. Pega nessa chaleira e traz.
Xavier percorreu o espaço em ruínas com o olhar procurando a chaleira, como se percorresse parte do corpo desconhecido de Doroteia. 

- Segue até ao quarto - diz-lhe ela. - Vou lá fora buscar água. Tomas um chá?
Ele confirmou com um aceno. O telhado não tinha forro e viam-se as grandes vigas de madeira. Havia uma cama turca coberta com um lençol amarelado e um conjunto de móveis que pareciam saídos de um leilão; de diferentes épocas e estilos, mas todos carunchosos e prestes a desabar. Ela retornara com uma pequena vasilha cheia de água. Despejou-a para dentro da chaleira.
- Anda, o melhor é sentares-te na cama. Aqui as cadeiras são perigosas.
Numa parede havia um espelho, quase opaco, da época veneziana, com uma pintura na parte superior. Havia também restos de uma cômoda e um móvel cheio de gavetinhas. E ainda uma gravura ou litografia, presa por quatro melgas nas pontas.
Doroteia pegou em um fogareiro de campismo, pousado em cima da credência repleta de gavetas, acendeu-o com o seu isqueiro e começou a fazer o chá. Sorriu por momentos ao aperceber-se que a pequena botija ainda continha gás. Enquanto aquecia a água, ficou meia aturdida na atenção.
- Ouve - disse, abstraída e olhando para o chão, enquanto tragava o cigarro.
Ouvia-se uma música patética e tumultuada. Aquele clarinete tocava sozinho do outro lado da rua. No outro lado da rua só lá habitavam os ratos e uma família de toupeiras no subsolo.

- Percebes alguma coisa sobre toupeiras? - Pergunta-lhe.
- Não.
- O meu pai tinha um pequeno arsenal de armadilhas, venenos. Chegou a usar azevinho disposto em redor dos buracos. Picava-as, fazia-as sangrar. As toupeiras são hemofílicas, sangram.
- Entendo. E qual era o interesse do Senhor Barbosa em uma casa que nem era sua? - Pergunta Xavier, curioso.
- O meu pai receava um assalto subterrâneo iminente. Do outro lado da rua até aqui, é um curto túnel. - Apaga o cigarro no resto da água quente que despeja pela janela. - O raio dos bichos levaram-lhe a melhor. Nunca os conseguiu vencer.
Doroteia, de vez em quando, gostava de falar a olhar o chão e deixando cair as palavras muito lentamente. É loura, de feições delicadas e coradas, bem feita, com as mamas bem postas e um rabiosque refilão.
O rapaz mergulhou os dedos na água a ferver e procedeu a retirar algumas lascas das folhas de chá que aí boiavam. De cada vez que apanhava uma, arremessava-a para a janela entreaberta e observava-a com um sorriso incandescente.
- E o que tem isso? - perguntou Xavier.
- Que é que tem? - replicou a rapariga. - já pensaste que podes estar neste exacto instante a beber água envenenada? Para isso, bastava que elas esboroassem as ligações das duas águas. As que saem com as que entram. Pronto. Água contaminada. As toupeiras são bichos perigosíssimos.
Xavier Poncelo refectiu por alguns segundos. Doroteia respirou profundamente e acendeu outro cigarro.
- A água ferveu, não foi? Não ferveste a água?
Doroteia Barbosa aprovou com um movimento de cabeça. Nesse momento recomeçou o som do mesmo instrumento vindo do outro lado da rua. A rapariga deu uma palmada na cabeça. Ele está sentado na cama e ela debaixo do lençol amarelo, quase preto, de olhos fechados. Acaricia os olhos, a cavidade dos olhos, os contornos superficiais, a testa. Procura às cegas outro rosto, através da pele, dos ossos.
- Estás bem? - inquire-a.
- A coisa aconteceu muito bruscamente como uma morte.
- O quê?
- O meu pai. Desistiu de lutar pela casa. Desistiu de nós. Eventualmente a minha mãe divorciou-se dele e eu fui com ela. - Chora. Está face à perda, que ressentiu nesse instante. - Tudo isto por causa de uns malditos bichos cegos. Xavier ergue-se em um impulso.
- Vou indo - disse. - Não me apetece que me estragues o dia com as tuas histórias sombrias.
Era quase meio-dia, e havia como que um elemento aziago na composição da luz naquela casa. Notou ele com a sua tendência para a superstição.
- Saio contigo. Foi um erro te ter trazido aqui. Foi um erro ainda pior ter voltado aqui.
- Não fiques assim. É que há dois dias que ando com uma dor de dentes terrível. Estou sem disposição para nada. - Empurrou a janela para trás e deitou o resto do chá para as traseiras.
- Sim. - diz ela. - Reparei que tinhas a bochecha inchada, mas não te quis dizer nada sobre isso, podia ter sido alguma luta em que te tivesses envolvido, e sei que os homens não gostam nada de falar sobre isso quando perdem.
O rapaz fez um gesto de impaciência. Havia uma pequena sala antes do quarto, no caminho da saída. Nem reparara nisso ao segui-la até ao quarto. Trazia então a cabeça ocupada com o cu dela ao desencontro dos seus pensamentos de agora. Doroteia não deixava completarem-se as suas decisões nem vir a ocasião definitiva para se despedirem.
- Toda a gente faz de mim uma coisa e eu sou outra muito diferente - diz-lhe. - A Doroteia é isto, a Doroteia é aquilo, e não é nada disso. E eu é que lhes dou que dizer. Mas quem é a Doroteia ainda ninguém acertou. - acendeu um outro cigarro. - És casado? - Xavier Poncelo disse que não. - Tens uma amante? - Ele abana a cabeça. - Ah, és livre? Como eu. Tens cara de ter uma noiva. - Xavier reafirma que não.
- Se tivesse uma noiva porque viria aqui contigo?
- Porque és homem.
Ele já não queria aquilo de maneira nenhuma. Ia despedir-se e pronto. Faltava-lhe só a ocasião para o fazer delicadamente. Ela voltara a sentar-se na cama e saboreava o cigarro com os olhos postos na gravura na parede.
- Tentou suicidar-se, não é verdade?
- Sabes quem é?
- É o teu pai. O Senhor Barbosa. Lembro-me de ter lido no jornal: "Poeta local tenta o suicídio após divórcio".
- Chamas jornal àquilo? Um pasquim que colam nas paredes. Um escândalo! O badocha do Zeferino não saberia o que é uma notícia nem que esta lhe mordesse as banhas. O meu pai o que deveria ter feito era lançar-lhe a Guarda Republicana em cima. Um acontecimento natural como respirar. Uma falha apenas, mais uma frustração a juntar-se ao rol de tantas que já tinha. Agora, se se tratasse de uma morte real, um sucesso, muito provavelmente aquele sebento não a colaria nas paredes da Vila, com o resto do lixo. Os palermas que não percebem nada da vida são piores que os malandros.
Ele foi sentar-se ao seu lado, longe do mundo. A Doroteia era outra vez a da intimidade do grupo de teatro. Só que agora já não era preciso representar para ninguém. Desde que entrou para o grupo até este momento, ela fez sempre o possível para dar a entender a todos que nunca teria nenhuma ligação especial nem intimidade com ele. Mas não o conseguiu. Xavier tinha agora a confirmação no momento em que estavam realmente sós.
- Às hienas é preciso atirar gazelas vivas para lhes varrer os maus pensamentos da cabeça. - diz-lhe ele. - Ela mal tomou nota do que ele lhe dissera.
- Já o disse vinte vezes e repito-o agora, o meu nome é Doroteia Barbosa e não me arrependo de ser filha de quem sou. Sem deuses, donos ou patrões. Não me arrependo de nada do que ele fez, nem do que eu fiz depois, por ele.
A janela, ainda entreaberta, arrebentou-se nas juntas nesse preciso momento. Um vento repentino. E quando o vento soprava naquelas bandas, não havia quem o aguentasse. Xavier Cancelo tinha vindo com ela porque ela lhe prometera ensinar-lhe a falar em público, mas, intimamente seguira-lhe o corpo e a bela voz, persuasiva, carnuda. O seu erotismo inteiro dissipara-se com aquela súbita ventania que cheirava a sabão rançoso e às suas lágrimas.

(continua...)



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