Avançar para o conteúdo principal

Praia dos Banhos


Todas as estátuas de sal vão desaparecendo perante o rumor do mar. Até me lembro do exacto instante diferido da sua queda. A manhã estava pronta. O Sol na extensa espera da aurora, que não era feia nem bonita. Havia tantos suicidas na família que cheguei a duvidar que fossem todos aparentados. Pequenas borboletas insónias trazendo às costas as consciências e afogando-as no escuro. Todos eles estátuas seguindo viagem na desenvoltura do salitre. Quando mergulhei a cabeça, pareceram-me todos mortos, mas eram só tios e primos afastados por muralhas em meu redor. Acabaram todos em tempestades e fúrias e tristezas e vergonhas heróicas, com as cabeças entre as mãos e o sal a fecha-los nas suas cavernas para sempre. Venho sorver ar às nuvens da madrugada e trago ainda um rasto de vozes agarrado ao cabelo como algas desencantadas. Vozes rasteiras que rompem por momentos o ataúde do mar. O tempo e a areia salgada esqueceu-os. Mesmo eu só me recordo de uma bruma envidraçada de braços cúmplices e daquela coisa enorme e indizível que só sussurrava por auxílio. Todos estátuas esfarrapadas, e eu, um espião a tentar nadar por entre o labirinto dessas memórias sentindo o sal a endurecer-me. Creio que o verão já passara e que foi a luz da manhã já posta acesa quem me decidiu a leveza habitável do corpo. Nadar, navegar ou morrer para sempre no mar.

Óleo sobre papel - s/título - FILIPE LARANJEIRA

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

...Poderia ser maior! Poderia ser um escritor, em vez deste blogue vagabundo que... foda-se!

  "On The Waterfront" 1954 - Elia Kazan

O Artista que faz falta Conhecer

Um dia desenhei um rectângulo largo em uma folha de papel-cavalinho, não foi salto nenhum, pois em anos antigos, já me tinha lançado a fazer rabiscos aqui e ali. Em pastel sobretudo, e uma vez cheguei ao acrílico, mas aquilo eram vãs tentativas sem finesse alguma. As artes plásticas são um mistério ainda, e uma das minhas grandes decepções como ser humano criador. Essa e a música. Creio até que terei começado a escrever por me faltar jeito para o desenho e para os instrumentos de sopro. Assim que voltemos ao meu rectângulo. Esquissei-o de vários ângulos e adicionei-lhes cornijas e janelas. Alguns sombreados. Linhas rectas e perspectiva autónoma, cor e até algum peso acumulado. Longe do real mas muito aproximado deste. Quando dei por mim tinha o Mosteiro (Stª. Clara) desenhado, em traços grosseiros e pôs-me feliz ter chegado ali, até me dar conta que cometera plágio. O meu subconsciente foi buscar o trabalho do Filipe Laranjeira ao banco da memória, e sem me pedir licença, copiou...