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Praia dos Banhos


Todas as estátuas de sal vão desaparecendo perante o rumor do mar. Até me lembro do exacto instante diferido da sua queda. A manhã estava pronta. O Sol na extensa espera da aurora, que não era feia nem bonita. Havia tantos suicidas na família que cheguei a duvidar que fossem todos aparentados. Pequenas borboletas insónias trazendo às costas as consciências e afogando-as no escuro. Todos eles estátuas seguindo viagem na desenvoltura do salitre. Quando mergulhei a cabeça, pareceram-me todos mortos, mas eram só tios e primos afastados por muralhas em meu redor. Acabaram todos em tempestades e fúrias e tristezas e vergonhas heróicas, com as cabeças entre as mãos e o sal a fecha-los nas suas cavernas para sempre. Venho sorver ar às nuvens da madrugada e trago ainda um rasto de vozes agarrado ao cabelo como algas desencantadas. Vozes rasteiras que rompem por momentos o ataúde do mar. O tempo e a areia salgada esqueceu-os. Mesmo eu só me recordo de uma bruma envidraçada de braços cúmplices e daquela coisa enorme e indizível que só sussurrava por auxílio. Todos estátuas esfarrapadas, e eu, um espião a tentar nadar por entre o labirinto dessas memórias sentindo o sal a endurecer-me. Creio que o verão já passara e que foi a luz da manhã já posta acesa quem me decidiu a leveza habitável do corpo. Nadar, navegar ou morrer para sempre no mar.

Óleo sobre papel - s/título - FILIPE LARANJEIRA

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