A
casa paroquial situava-se no fim de um caminho
sobre uma encosta íngreme que exigia um
sprint intermédio até ao final. Era no topo de um bairro pobre, desconjuntado, com a melodia cadenciada de todas as
ruas estreitas mais abaixo, a convergirem daí nos dias
de chuva.
Havia
um terreiro de saibro na parte de trás, que vinha continuado do lado do
cemitério, uma larga península atapetada com paletes de madeira, cobertores de
plástico e musgo vivo, desenfreado, cercada de zinco ondulado por todos os
lados, menos um. Cobria-se de teimosia com
uma só chapa de fibrocimento, tão bem aparafusada, que morreria
de pé mesmo que tudo se afundasse em
redor. Um daqueles locais onde nem as moscas poisam.
Foi aí que me instalei, quase
protegido, mancomunado, agremiado a toda uma
estirpe de uniões desunidas, na companhia de todos os outros desavindos, cansados da derrota com que cosiam os dias, chegávamos aos
catres de madeira e só tínhamos tabaco, mortalhas e uma sede carregada, tudo instrumentos para combater outros hábitos. - Éramos
dez ao todo, hemorroidas sociais, retirados da exposição crua pelo padre: O
Hilário, o velhaco do Joaquim Moreira, o Zygmut e a sua dama, a Pita-Burrada, o
Vasco Arenga, o Tito, o Valter Padrasto e eu, Plínio Monteiro. Havia ainda duas outras mulheres, a Graciete, que não era
de ninguém, por ninguém a querer, e a Cecília, que era só minha por sua única
vontade.
“Um
dia, hão de ser todos imunes aos vícios”, disparava o padre naquele discurso
diário que nos matava aos poucos. “Salvos, por fim.” Dizia-nos também que todos os sem-abrigo iriam para o céu, ninguém lho discutia,
mas eu tinha as minhas próprias ideias.
Era
meia-noite fria, frágil e exausto depois de entregar os cães ao padre, sabia que metade da paz estava em não a
desmentir nunca. Pensava nisto enquanto começava a varrer ao sabor da corrente
a pequena enxurrada de lixo trazido pela chuva, com uma vassoura de piaçabas
desmaiados. A outra metade era um exercício precário de compreensão. Só isto. O
papel de ambos era evidente nesta relação; eu conseguia as coisas, ela
mantinha-as por perto. Não tínhamos filhos, além dos que dormiam ao nosso lado
e suportávamos este vil lapso da natureza sem nos recriminarmos. Assim ela o
julgava pelo menos. Mais do que tudo, desejava era deixar semente minha neste
mundo, marco derradeiro de uma vida sem importância.
-
Se me amas de verdade, vais deixar-me entrar aí e sair depois, para sempre. –
Afirmava-lhe, quase sempre imperativo.
-
Ai meu pombinho excitado, meu belo poeta esfarrapado, - retorquia-me - porque
insistes tanto? Já te expliquei vezes sem conta. Não quero coisa alguma a
crescer-me aqui, - apontava-me depois a sua própria barriga opada de volume –
carne alguma que não seja a pouca que já tenho, e esse teu pau de homem macho.
– Isto soltava sempre a risota generalizada. - Quero-me manter moça e bonita
para ti meu pirata. – Resignava-me temporariamente, mas depois saltava-me tudo.
-
Recuso a dar-te ouvidos calado, isto não fica assim Cecília.
-
Ah não? – Desafiava-me. - Anda cá outra vez que te mostro. – Só à segunda vez é
que fechávamos as cortinas que o padre instalou sobre um varão, tentando
inutilmente manter as mulheres separadas num canto. “Bendito seja o canto
sossegado aonde se mata o bicho. Onde se matam todos os bichos” – Alardeava o
Joaquim.
Quando
entrava na Cecília, fazia sempre uma cara pantomímica três segundos antes do
fim, altura pontual em que ela, brutalmente me empurrava para longe com um
murro amoroso ou um pontapé providencial. Aprendera a não confiar demasiado em
nenhum homem, quando assim, mais vulnerável se encontrava. Os homens aninham-se
bem quando lhes convêm, e ela só me queria ali, dentro de si, pelo tempo exacto
que lhe apetecesse. Éramos ecos geométricos um do outro, mas nada meu se
apegava ao seu útero egoísta, e todos os seus ovos morriam jovens e belos.
Desconsolado,
para ali ficava, no canto “bendito” de terra batida e colchas tesas, de pila destroçada
no frio da noite e beiças ensimesmadas. O tempo era sempre curto para me
garantir um futuro. Depois, vinha-me buscar de novo, toda sorridente, cobria-me
de beijos e enroscava-se nos cartões e nas mantas ao meu lado, até
adormecermos.
Nunca
dormia intacto, contudo, remexia-me a esperança de que qualquer coisa fértil
tivesse ficado lá dentro dela, a germinar-me uma garantia de existência
além-vida. Por vezes observava-a de perto, enquanto dormia. O seu cheiro
dizia-me que sim, porém, o tacto da intuição desanimava-me sempre.
Nem
as ratazanas se aproximavam do cemitério dos bêbados para nos pressentir um fim
pavoroso, o padre vinha de madrugada e espalhava veneno pelas redondezas por
rotina, como aliás fazia com tudo, de modo que ninguém nunca sabia em que ponto
estava do caminho para o seu juízo final. A sua especialidade evangélica era a
de oferecer a cura para todos os desvios: Homossexualidade, incompatibilidade
sexual, ninfomania, prostituição, frigidez e outras fobias a granel. Palavras
suas, ipso facto! Deixava-nos aqui
buscando certezas sozinhos, e depois vinha de noite, espalhar veneno,
tentar-nos.
A
única certeza de que dispunha era a do amor que ela me tinha. E a simplicidade
do seu amor confundia-me demasiado.
-
Espero que hoje me humilhes – dizia-me por vezes – que me faças sentir um
prazer violento, selvagem. Preciso tanto meu diabinho, estou farta de pureza,
de castidades. Ai meu arrombador de corações, fode-me esta carne toda, que já
não representa outro papel que não seja ser toda tua. Espero que lhe faças
coisas terríveis antes que o padreco nos expulse daqui de uma vez. – Havia
sempre quem risse alto do outro lado das cortinas. - Passaremos nisto o que nos
reste de boa vida, porque já nada mais importa. Só nós os dois, a fodermos, a
fodermos para sempre. Anda cá meu vagabundo lindo.
-
Não sou nenhum vagabundo. – Replicava. - Tenho um tecto por cima da cabeça, não
tenho?
-
Não digas nada, absolutamente mais nada.
Calava-me
e subia-lhe ao peito a ver-lhe a densidade com a língua.
...continua
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