Avançar para o conteúdo principal

O discurso do Corvo.



Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu,
voo ao acaso, sem saber por quem voar,
por sobre rostos de carne, palha e infinito.
Trago as mãos feitas num espesso breu,
toldadas pela sede de te possuir e de te dar,
o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito.

As palavras, quando são poucas, sabem melhor,
dizem tudo melhor, se forem poupadas.
Abre os braços então, e recebe-as em teu seio,
a secura desta terra já consome o sangue do meu terror.
Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas,
disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio.

De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes,
continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve.
Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder,
Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes,
desta paixão que é dada, e que não se devolve,
e que é minha e tua, porque assim tinha de ser!

Casimiro Teixeira
2012




Comentários

Enviar um comentário

Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

A ilusão de morrer.

Aqui estou no pouco esplendor que expresso. A tornar-me mais e mais fraco à medida que envelheço e perco a parca noção de humanidade que um dia posso ter tido. Só antecipo resultados finais de má sorte. Dor, doenças malignas de inescrutáveis resultados, possibilidades de incontáveis suicídios sem paixão, paragens cardíacas no galgar das escadarias de S. Francisco. Atropelamentos fatais nas intersecções de estradas mal frequentadas. Facadas insuspeitas pelas noites simples de uma pacata Vila do Conde. Ontem quis ir à médica de família, talvez me pudesse passar algum veredicto. Não fui capaz. Não admito os médicos e as suas tretas 'new age'. Há menos de meio-século atrás, esta mesma inteira profissão fumava nos consultórios e pouco ou nada dizia sobre pulmões moribundos. A casa na praia valia mais que o prognóstico verdadeiro impedido. Aqui estou, contudo. Ainda aqui estou. Trapos e lixo vivem melhor as suas existências que eu. Escrevo isto, bebo, escrevo, mais três cigarros. Que