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Lembras-te do Henri, na ponte?



Lembras-te da nossa ponte em Paris?

Sim, eu sei. 
Existem pontes a ligarem lugares em todas as pessoas do mundo, 
mas aquela ficou a ser o nosso cliché, a nossa difusa eternidade.
Soubemos da sua história, 
e que fora o Napoleão a levantá-la entre margens, 
imaginando que teria sido pelo amor da Josefina, que muito o achagava de ter de atravessar o rio a nado, vinda do Louvre.
Para nós, aquela ponte era a história toda da nossa única Paris.
Ouvimos o bradar da revolução das luzes ali mesmo, 
e choramos tanto quando a Maria Antonieta caminhou sozinha até à guilhotina, 
como naquele filme, lembras-te? 
Lemos o Hemingway e o Scott fitzgerald em cima daquela ponte, 
de mãos dadas, encostados aos aloquetes quentes.
Vimos o Picasso, o Modigliani a espalharem luz e cor, 
e até a minha tia que nos emprestou o apartamento, 
parecia ter um segredo na memória que não podia contar para ninguém. 
Recordas-te daquele homem que passava por nós, todos os dias, 
sempre de rosto embargado pela inclemência de alguma guerra interna? 
Como é que ele se chamava?
Henri, sim. Henri Langlois. 
Um dia, não aguentaste mais, 
largaste a minha mão, e foste a meio da ponte abraça-lo. 
Nunca mais esqueci aquele instante.
Como ele chorou nos teus braços acolhedores, 
parecia purgar algum pecado de amor a que se acometera 
ou a desolação de uma perda insuportável. 
Limpou as lágrimas e entregou-te o seu pequeno cadeado 
com a chave do seu mais valioso tesouro, ainda pendurada. 
Devia andar por ali há anos, 
só a aguardar por um abraço de um coração apaixonado.
E tu fizeste-o. Tu, e mais ninguém.
Viste-o partir depois, e ficaste parada entre o trânsito dos amantes, 
para sempre eternizada no rol de retratos inolvidáveis daquela ponte.
Em seguida, aproximaste-te, 
encontramos um espaço vazio e pusemo-lo ali, maravilhoso, 
pregado nas balaustradas
com um bilhetinho apenas, 
um poema escrito entre nós três e o seu amor perdido, 
e que dizia somente: 
"Sinto a tua falta, para sempre." 
Atiramos a chave ao rio e beijámo-nos.
Quase acertávamos em um barco que ali passava nesse momento.
Lembras-te de te teres arrepiado? 
Disse-te que foi porque o Outono estava a terminar, 
mas tu sabias porquê. 
O teu arrepio foi a esperança do Henri, a renascer.
Agora tenho medo que esses instantes se apaguem. 
O amor tornou-se tão comum nas palavras 
que se deixou de amar as pessoas, 
começou-se a amar só o Amor.
Pode-se até morrer assim, sabias?
Talvez seja por isso que Paris está a cortar os cadeados 
e a levá-los da nossa ponte. 
Caiu um pedaço até, com o peso de tantos amores perdidos.
O serviço do medo é esse, 
meter o irracional onde já não é possível subjugar o sublime.
Dizem que o peso daquele amor todo, preso nas barreiras, 
poderia matar todos os que já atiraram chaves ao Sena.
Não acredito.
E o Henri também não.

"Pont Des Arts" CHARLES PLATIAU/REUTERS



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