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A BOCA (ainda) no lugar certo


Comecei a querer falar numa idade em que o horizonte era irregular, quase montanhoso, e quando olhava em frente julgava estar a chegar a algum lado. Mas nunca mais chegava. O torpor dos sons das línguas que tudo adulam aferrolhava-me a boca. Estava cheia de eu não poder falar. Tinha a boca cheia de me calar.
Aos doze anos, uma senhora muito bonita tentou catequizar-me o que Deus esperava de mim. Disse-me que a boca de um animal é espessa; que tem uma boca pela forma da boca, por dentro e por fora. Que é o vazio cheio de periferia e os beijos são ao centro, um absoluto desperdício de boca. – Tu não és nenhum bicho pois não? – Sou pois. – Oh! – Exclamou. – Mas Deus quer-te homenzinho, sabes? – Não.
Aos quinze anos, situei-me por fim na língua franca destes barulhos. Fui ter com essa senhora, pedi-lhe que me emprestasse o seu relógio. – Para quê? – Quis saber. – Chiu! – Disse-lhe. Peguei no seu relógio e pousei-o na mesa a contar tempo sozinho. – Que estás a fazer? – Quis saber. – Vou ficar aqui muito quieto, e se, após cinco minutos, Deus não me fulminar a boca, é porque ela existe e serve o seu propósito.
A senhora com voz de vento e gestos aéreos falou-me depois sem palavras. Serena, sorriu-me, com os dentes todos. Mostrou-me numa folha, pessoas coloridas desenhadas com as bocas nos lugares certos.
Mesmo sendo o silêncio a minha mais odiada linguagem hei de ter sempre a boca cheia de palavras caducas por culpa dele. Disse-lhe: É urgente matar a adulação desgovernada do silêncio, destruir-lhe a divindade. Preciso tanto de um deus normal para lhe falar deste cansaço e desta morte.. e não o tenho: só existe o resto de um rosto sem boca. Deu-me aí uma estalada e chamou-me coisas ignóbeis vindas do fundo do velho testamento.
Saiu a correr, destroçada. Chamou o padre. Repetiu-lhe tudo. O padre mandou chamar os meus pais. Vieram a correr, destroçados também. O padre repetiu-lhes tudo. Chamaram as autoridades superiores, que vieram, mas lentamente e sem remorsos.
O mais velho dos funcionários adjuntos era como um guia turístico. Conduziu-me por todos os salamaleques mais banais dos repressores. Que era preciso ver o futuro à luz do que o passado nos ensinou etecetera. Sentámo-nos junto ao aquecedor, calados por um tempo longo. O padre abanava o corpo, sibilando umas rezas. Os meus pais eram dois postes enferrujados pelo medo. Não concordava com nada, nem com os olhos nem com a língua. Caluda. Que me calasse, que me calasse para sempre! – Disse-me depois. – Ou então...
Senti-me invisível como as paredes da igreja.
Ou então! – Repetiu. – Ou então o quê? – Levantei-me e saí da igreja, sem paciência para estas bocas foleiras. O último som desse dia senti-o no tombar de uma folha por entre ramos e troncos e desencontros. No instante tão demorado da sua queda perguntei se seria demasiado cedo para falar – o que quer que isso fosse por dentro da fenda que se abriu desde que me impuseram o silêncio para sempre. Tanto faz. Já estive de joelhos no chão a ceder ao silêncio, à memória da morte, e agora sei-me a subir para um outro futuro de boca aberta.
Afinal, Deus não me fulminou, logo, ela há de existir para ser o que deve de ser.


Casimiro Teixeira
Dezembro de 2013

in FLANZINE #3 BOCA

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