Justino Viriato era
um homem incomum. Pouco dado a cismas e dono de um juízo mental irrepreensível
dada a sua idade avançada. Arrastava consigo a perna esquerda, como um toco
inútil, caída faz anos, na desgraça da paralisia, e o muito além disto que lhe
pudessem apontar, derivava sobretudo da sua fala dobrada em tremelga, fruto do
mesmo incidente que lhe tirara vida à perna.
Era uma criatura sem
proveito de serventia: nunca apanhava nada do chão, nunca apagava luzes, nem
fechava uma porta, e na plenitude da sua vida, quarenta anos antes, o fulcro de
glória da sua existência, havia sido a sua ostentosa coleção de botões de
punho, de derivadas origens, cores e formatos. Amealhou mais de dez mil, muito
embora poucos fizessem fé de que haveria tantos assim no mundo.
Só outra paixão a excedia:
Germina Arosa, a primeira mulher que o vira urinar sentado, sem lhe fazer
remoque de malícia, e logo que o ajudou a levantar-se do anel da sanita, ergueu-se
com ele, um amor que o acompanharia para sempre.
A natureza tinha-o
feito reservado e esquivo, e ela moldara-lhe o caráter oposto, dinâmico e
desabrochado, incutindo-lhe o gosto de viver e o prazer da paródia. No dia
seguinte mandou-a buscar uma malinha de coisas suas, para que passasse a viver
ao seu lado, não fosse o diabo tece-las. Germina adormeceu com essa ideia, mas no
outro dia a seguir, tinha já um guarda-vestidos repleto de coisas suas num
quartito de criadagem nos fundos do solar.
Ele, claro,
protestou, pois queria-a mais perto ainda, de preferência a aquecer-lhe os pés
na cama, mas Germina acenou com a cabeça cheia de vigor e limitou-se a
conduzi-lo, apoiado no seu braço até à sala de jantar, para a refeição do
meio-dia.
As más-línguas não
demoraram, e fizeram eco de vozes viperinas pelos arredores dos montes e
arrabaldes, além daqueles ouvidos entupidos pelo desmazelo da acumulação de
cerume. – Que não é mais que uma caça tesouros. – Que vai levar o velho à cova
antes do tempo. – Mais outros perjúrios de má-criação. Justino porém, nunca
havia sido tão feliz. Já nem fazia lembrança dos benditos botões, e só tinha
olhos para ela. Apesar do que lhe afiançaram os médicos, ainda viveu quase
vinte anos ao seu lado, tinha ideia de que o coração lhe batia cada dia com
mais vigor, e Germina nunca lho desmentiu, justo até ao fim.
Deliciei-me a ler este texto. Prometo voltar sempre.Faço questão de fazer deste apeadeiro o ponto de partida e de chegada da minha viagem.
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