Avançar para o conteúdo principal

Os sonhos também se abatem!


Era o segundo dia de canícula, humedecida vez em quando por uma chuva miúda, uma chuva molha parvos. Ele interrompeu a narrativa do conto, para escrever outra história que lhe ocorrera quatro ou cinco dias antes, e que desenvolvera, pensou, nas duas últimas noites enquanto dormia. Sentia-se confiante e seguro, e decidiu deixar o conto para mais tarde e escrever a história antes que a ocasião fugisse.
- Almoçamos? – Questionava-o a mulher. – O que queres comer?
- Merda! – Espantou ele num grunhido.
- Aí tens então.
Pouca conta deitou ao que ela falava.
- Esta merda custa um dinheirão – continuava ela sem dramatismos – mas aconselho-te a que não a comas enquanto não sentires que vais morrer de fome.
Nem bem tinha começado, mas o seu plano era tão simples quanto insensato. De dia trabalharia na história e há noite voltaria ao enredo do conto. Sem pausas, sem contratempos.
A mulher afastou-se para o lado e deixou-se guiar até uma das poltronas do escritório, tombou nela como uma carga de ossos.
- O se passa afinal? Já foste falar com o meu pai sobre o trabalho?
Ele sorriu-lhe de modo tranquilizador.
- Nada. Não aconteceu nada, esse é que é o problema. Não me ias dar um prato de merda?
Saiu disparada rumo à cozinha e pode ouvir dali a sua azáfama. Respirou fundo.
Passado um instante retornou, trazia uma fúria incontida nos olhos. Ele voltou a acalma-la com um sorriso.
- Vais acabar morto se não comeres nada. Há quantos dias não comes coisa que se veja?
- Estou a escrever, não entendes isso?
- Escrever! Se arranjasses um emprego em vez? Isso é que seria uma grande coisa.
- Preciso escrever esta história. Deixa-me em paz!
- Olha bem para o que eu te digo, ou pões algo no estômago ou não vai haver escrita que te valha.
Engoliu as suas palavras e voltou a atenção ao trabalho. Mais ela falasse e menor seria a sua vontade de comer. Ela sabia-o, e por vezes julgava certo que ela o torturava dessa maneira. Tinha de começar a história, mas por onde?
- Eu preparo-te o teu prato favorito, que tal?
- Porra mulher deixa-me escrever.
- Come qualquer coisa primeiro.
Percebeu a futilidade de lhe resistir, não tinha esse poder. Dirigiu-se à cozinha e sentou-se à mesa.
- Vens comer?
- Sim, e amanhã prometo que vou falar com o teu pai.
Sem dar mostras de vitória, limitou-se a levar uma garfada à boca. Pouco mais havia para dizer.

Comentários

  1. São assim as histórias. Têm essa capacidade de nos fazer esquecer de tudo, até das necessidades mais primárias, como comer. Gostei muito.

    ResponderEliminar
  2. Sempre que leio um comentário seu aqui no blog, tenho o meu dia um pouco mais iluminado. Beijinho.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

...Poderia ser maior! Poderia ser um escritor, em vez deste blogue vagabundo que... foda-se!

  "On The Waterfront" 1954 - Elia Kazan

O Artista que faz falta Conhecer

Um dia desenhei um rectângulo largo em uma folha de papel-cavalinho, não foi salto nenhum, pois em anos antigos, já me tinha lançado a fazer rabiscos aqui e ali. Em pastel sobretudo, e uma vez cheguei ao acrílico, mas aquilo eram vãs tentativas sem finesse alguma. As artes plásticas são um mistério ainda, e uma das minhas grandes decepções como ser humano criador. Essa e a música. Creio até que terei começado a escrever por me faltar jeito para o desenho e para os instrumentos de sopro. Assim que voltemos ao meu rectângulo. Esquissei-o de vários ângulos e adicionei-lhes cornijas e janelas. Alguns sombreados. Linhas rectas e perspectiva autónoma, cor e até algum peso acumulado. Longe do real mas muito aproximado deste. Quando dei por mim tinha o Mosteiro (Stª. Clara) desenhado, em traços grosseiros e pôs-me feliz ter chegado ali, até me dar conta que cometera plágio. O meu subconsciente foi buscar o trabalho do Filipe Laranjeira ao banco da memória, e sem me pedir licença, copiou...