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Iconoclasta, para sempre!


O ano mal começou e cai-me esta notícia no colo como uma desgraça de família; morre David Lynch!

A idade ilude-nos a acreditar que viveremos sempre na presença daqueles que nos trouxeram pausas de alegria, na jornada muito póstuma já de um caminho trágico que julgámos, de tempos a tempos, ser real, até nos defrontarmos com a omnipresença da surrealidade como uma amiga do peito, da qual já não prescindimos jamais. Isto é o cinema do David Lynch.

Tenho 53 anos e vi todos os filmes e séries e curtas e experimentações cinematográficas que da cabeça deste homem surgiram. As ideias foram sempre o cerne da sua arte. E este empurrou-as para diante, à força por vezes, noutras, em uma calma de brisa de verão, muito como um poema alastra pelo vasto espaço de um sonho comum. Quis fazê-lo assim, pois esta era a sua visão do mundo. 

Quase nunca se sublimou, ou fez pouco, ou ambos. Poucas vezes se entregou à injúria da ganância como justificação dos seus interesses artísticos. Não! Por seu turno, interiorizou uma academia criativa própria que de dentro lhe pulsava aos repelões e assim foi forçando um filme atrás do outro, até o culto o apanhar na esquina e lhe trazer o interesse de alguns actores e produtores e desenvolvedores de conteúdos interessantes o suficiente, para lhe justificarem o génio.

Nunca se comprometeu, todavia, se alguém lhe atirou dinheiro foi porque quis. Lynch, tal como Orson Wells no tempo de "Citizen Kane", fez os filmes que quis, como quis, sem restrições, e estranhos, bizarros quiçá que fossem, de ponta a ponta, foram sempre os filmes que viviam na sua cabeça. Tudo começou com as curtas, e não será sempre assim que um realizador experimental deveria começar? - Bolas, não deveria ser assim que qualquer realizador haveria de começar? Eu acho que sim. 

Depois.... "Eraserhead"! - Um dos filmes mais estranhos da história do cinema americano, e, certamente, o justo prenúncio da carreira de longas-metragens deste estrambólico "master Lynch", o Jedi do cinema insólito, do cinema não afeito, singular, extraordinário. Este passo, em tudo nada falso, criaria um acervo de filmes tão impactantes e relevantes, qua ainda hoje são revisitados como objectos de estudo para potenciais estudantes da sétima arte. As ideias do David reverberam pelo futuro, e não creio ser possível a indiferença perante obras de arte como "Elephant Man" (1980), "Blue Velvet" (1986), "Wild at Heart" (1990) ou "Mulholland Drive" (2001). O retorno à sua deliciosa bizarria chegou em 2006, com algum enfurecimento dos acólitos menos cerrados que só aguardavam anestesia, como assim o fazem todos aqueles que não compreendem, nunca compreendem a genialidade; David Lynch nunca criou para agradar alguém que não fosse ele próprio, e perceber isso, é também um quente cobertor em um longo inverno de razões pré-estabelecidas. 

O Filme era "Inland Empire" (2006). Talvez não fosse um dos seus melhores, mas ainda assim foi um dos mais perfeitos filmes lynchianos, e a isso se deve o facto de ser uma película que não obedecia a nenhuma estrutura consensual, é o surrealismo no seu estado puro, ou seja, é um filme do David Lynch.
Este homem exteriorizou muitos demónios comuns a todos nós. Fê-lo em película e em vídeo e em sonhos que muitos de nós, os verdadeiros loucos que o amamos, nunca antes julgámos ser possível ver em um ecrã (grande ou pequeno), julgando que tal coisa só poderia acontecer nos nossos próprios sonhos ou pesadelos ou assim...mas, Lynch debruçou fotografia e luz e diálogo e acção sobre alguns dos nossos mais íntimos devaneios, alguns até que nem sabíamos ter, e em consequência disso, conquistou-nos, a alguns, certamente. David Lynch não é para toda a gente, só para os mais galhardos, os mais excêntricos.

No fim de contas, toda esta criatividade não habituada, ilumina-nos, de algum modo. Há que encontrar justaposições na arte que admiramos, ou então tudo não passa de hipocrisia e de fingimento e não é fácil fazê-lo com Lynch, mas, atravessa-se um oceano e no dealbar da nova iluminação, aí está a estranheza novamente. Ele não perdoa, não concede, não remite, é. Conheço poucos realizadores como o David Lynch, são daqueles frases feitas tipo: ou se gosta, ou não se gosta...é verdade. David Lynch não brinca aos filmes, não joga aos lucros, não faz por fazer. Nunca o surreal foi tão real como em um filme seu.





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