Cedeu a semana alguns dias à redução do regresso à desdita. Nenhum estafeta viera trazer-lhe a tragédia líquida aos pés da porta. A garrafa de Coca-cola, meia, continuava depositada incólume no suporte do frigorífico, justo até aquele dia fatídico. Humberto bebia 7 litros de uísque por semana. Sete litros exactos. Quase tão exactos como toda a sua vida.
Ainda não tivera a experiência acolhedora de saborear uma pizza com amigos, nem sequer a regurgitante ocasional cerveja da adolescência. Aquilo era mais membrana que homem, todo ele dobras da cor mais pálido do sangue, todo ele um cheirete de peles, líquidos assombrosos de brancos e pêlos à mistura. Um produto recolhido da vida de antes agora. Fechado seria sempre uma fortaleza, aberto estaria perdido entre iguais.
Aliás, Humberto só bebia assim tanto, por ser aquele macaquinho em todo o tempo que assistira ao pai fazê-lo. Só mijava sentado pelo mesmo motivo. Mal fazia ideia dos estigmas que os vícios e as idiossincrasias resgatam por maldade a um corpo humano, menos ainda à sua mente e espírito. Molhava-se de saliva e prosseguia lubrificado de tolices.
No apartamento por cima da garagem, havia um canteiro de lés-a-lés, correndo o renque de janelas que debruavam o 1º andar. Como criança, assistira à mãe a plantar aí uns ganitos que explodiram e agora quase lhe tapam as vistas ao exterior. Ou quiçá, lhe tapem as vistas dos que lá por baixo passam. De modo que Humberto, jamais os podava. "Erva das bruxas", ouviu uma vez a mãe chamar-lhes, e, concluiu que não se pode viver sem estas ervas a proteger-nos do resto do mundo. Graças a elas conseguiu se tornar o perfeito espião da doca. Conseguiu observar o Gedeão Marafona a espetar um garfo no olho do petiz Anísio, a Di Gouveia a pôr-se debaixo do talhante Garcia, dentro do esquife do marido ancorado na doca, mas também assistiu às ancas perfeitas de Altamira a apaixonarem-se por si. Assistiu sozinho, porque as coisas mais bonitas de todas não precisam de atenção. Acontecem por si só.
Neste dia, como na maioria dos dias, ali estava, a enfiar as fuças na Arruda, disfarçando-se de pessoa entre as folhagens. A mímica era perfeita! - Nem os olheiros, nem os chorosos, nem a polícia levantou os olhos até aquele matagal. A perícia estava em não mover um músculo. Só que Humberto, agitava-se por saber notícias de Altamira, e, nem a TV nem a "Janela", lhe acrescentava novas ao seu estado. Um leve movimento suscitou o interesse de Jeremias Trancoso o polícia que assomou acima dos outros nesta investigação de rotina. sim, porque Altamira e o seu destino caíam dentro do saco roto da indiferença total. Coisa bem sabida. Era uma puta turca que polvilhava pecado pelos recantos mais remotos de Santa Clara. Não havia realmente nem olheiros, nem chorosos naquela doca-de-crime. Só a guarda a cumprir o seu dever de chegar a uma conclusão qualquer que fechasse o caso de uma vez.
Todavia, Jeremias fazia questão de ser o polícia que o seu pai quis que fosse e por isso não fez de conta que não viu aquele restolhar esgazeado de galhos e folhas no segundo andar daquele apartamento, directamente sobreposto ao local do provável crime. Lançou um olhar demorado até aí e tomou notas no seu caderninho. Humberto sentiu um incómodo nas tripas e nem percebeu porquê.
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