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O Ginásio

 

É tão estranho como o Sol de uma qualquer Primavera impulsiona os corpos à rua. Está frio, aquele tipo de frio que iguala o desespero da perda humana, ponto por ponto. Aquele frio exacto do calendário. Não é um frio setentrional, nem podia, vive-se em Portugal. Contudo, o frio que faz, ajusta-se ao nosso normal clima e corta, incomoda, dói, recolhe-nos, faz-nos povo mais caseiro, ou, assim se adivinharia.

Não é o caso. Pois a tundra gelada do país tem horário: entre as 03h00 e as 07h00 da manhã, e depois, no segundo período avassalador, por volta das 19h00 até ao raiar do novo dia seguinte. Nesse interstício aquece-nos um Sol revoltante, que, de algum modo misterioso purga toda a geada interior das gentes cautelosas e, pior, faz-las saírem em catadupas de répteis abjectos a absorverem-no como podem.

Vejo as criaturas do ginásio defronte, na praça, a cumprirem as regras que o dinheiro pagou e o remorso comandou. Frágeis fac-símiles de seres humanos desesperados por melhores figuras, agitam-se, correm, contorcem-se, suam...vejo tudo desta janela cristalina. Tão pusilânimes no receio do calor que se prevê, tanto, que se entregam àquelas tristes figuras apenas para parecerem.

Nisto foi no que nos tornámos, em uma gente que faz o possível e impossível para chegar a parecer melhor do que é. Já ninguém se quer reconhecer como realmente é. Só quer ser melhor. O resto do mundo precedeu-nos, mas, aqui também já grassa esta peste infecta de pessoas que não se contentam com o que são, querem ser uma melhor versão de si mesmas. E, a cavalgadura oportunista do capitalismo está também atento e percebe que, lançar um grupo de dez ou doze pessoas a entristecerem-se em uma praça pública, é uma fonte de dinheiro que elas de bom grado pagam.

Estes tipos deste ginásio, são realmente uns génios. Alugaram duas ou três lojas reduzidas, demasiado reduzidas para a avalanche de gente que previram aceitar os seus termos. Nomearam o ginásio como puro, e o treino daquilo que oferecem é maioritariamente atirado para um espaço público, a praça supracitada, e todos os caminhos daí até ao Mosteiro. Até onde debandam a manada de tristes que pagam, para correrem até lá e de lá para cá. É uma matiné de filmes pobres e de baixa classe que assisto, no decorrer dos dias. Eu próprio, não fosse uma carcaça prestes a desfazer-me em pó, poderia fazer o mesmo, e de graça.

Não falo da boca para fora: estão literalmente por baixo dos meus olhos, porque por baixo destes está a praça, e, é onde eles estão. Correm, pegam em coisas estranhas, usam os bancos públicos para flectir as suas frustrações que esperam mortas antes da chegada do Verão. Agitam cordas, deitam-se em tapetes de ioga, um exército de idiotas a pagarem as suas más imagens até estas melhorarem definitivamente. Estalam como chicotes e debandam pelo caminho do cemitério fora até ao Mosteiro. Retornam. Atiram-se a mais prostrações nos rectângulos da Praça, encarrilam-se em redemoinhos de correrias desvairadas que só os envergonham. Andam, correm, correm, matam-se em exercícios inúteis. São plasticina nas contas avultadas daqueles seres que os comandam por grito. - Os 'Personal trainers'.

Mas quem são estes? Uns miúdos que saíram ante-ontem da escola de motricidade humana, e se motivaram a ganhar dinheiro, explorando as frustrações mais comuns dos humanos; o nosso corpo! E, nem são únicos, pois todos os ginásios o fazem. Estes, apenas divisaram uma forma mais gratuita, mais rentável de o fazerem. - "Vamos por as pessoas na rua a fazerem aquilo que os outros ginásios todos as obrigam a fazer, dentro de portas, e a usarem equipamentos caros que, se assim fossemos, teríamos de comprar."

Será que a vergonha faz parte da senda de se chegar ao objectivo? De se tornarem aquelas pessoas que não são? É capaz! Digo-vos, é de génio!

Fora dos ultra-capitalistas espaços em regime de 'franchise' que por aí deambulam, este ginásio que assisto diariamente, é, o mais bem sucedido de todos. Presumo que seja a qualidade superior dos seus criadores e 'treinadores', porém, tenho quase a certeza de que o sucesso deste modelo, deve-se ao utilizar do espaço comum como se este lhes pertencesse. Ninguém que por aqui habite parece muito incomodado com isto, só eu. Serei talvez um 'hater', uma má pessoa que se debruça sobre estas coisas fúteis e tenta reduzi-las, ou detê-las. A Praça é de todos. Logo, também é deles, como é minha. Todavia, além desta pedra, vejo outras no meus sapatos; uma delas é o estacionamento. Parece haver uma concordância tácita em não se importarem com o facto de miríades de carros aparcarem onde bem lhes apraz pelo espaço da Praça que é possível entrar com um carro. Isto também muito me irrita, mas talvez seja tópico para outro post.

Este submete-se aos 'génios' que usurparam a 'minha' praça e a tornaram no pesadelo que em cima descrevi. Nunca escondi a minha aversão por ginásios. Acho-os fúteis, templos capitalistas da pressão constante a que todos somos submetidos a nos tornarmos melhores do que somos. Como se as suas perspectivas do que é melhor, fossem realmente realistas. O dinheiro existe em uma bola de neve. Isto é criado porque aquilo o justifica. As revistas e os filmes, e, praticamente tudo que seja visto ou assistido como uma experiência global insiste em modelos injustificáveis de seres humanos impossíveis, e as gentes, mais ou menos influenciáveis, influenciam-se inadvertidamente, acabando por querer frequentar ginásios para assim o alcançarem. Por consequência, os ginásios proliferam como míscaros, e por aí fora, até ao apocalipse da total desintegração humana como seres próprios, que são e serão aquilo que foram desenhados para serem.

Esta é, obviamente, a minha opinião, isolada, iconoclasta, estranha até. Escrever sobre 'assuntos', é a única forma meramente possível de alguém se expressar. Claro que a plataforma importa, e também a posição de relevância de quem a expressa. Não há dúvida de que até isto se encaixa nos modelos capitalistas. Se eu quiser que a minha posição anti-capitalista singre, terei de me despir, empinar o cú e permitir a sodomia a que todos aqueles que contam, contam de facto.

Não o farei, obviamente. Não é uma posição homofóbica, é um manifesto de independência. Não quero ser melhor absorvido por aqueles que me dizem o que é ser melhor! Quero ser melhor, porque não intendo usar os espaços de todos, porque não pretendo ser 'o génio', que se lembrou se ser mais pulha que a maioria dos pulhas, - que, hoje em dia são quase todos - não vou por aí, não, não...vou, por onde me atece ser acutilante. É isso que me faz feliz!

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