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Altamira, ao entardecer. - Cap.2

 

Lavadura de nojo. Viera-se justamente três dias antes de se ver a si mesmo pondo-se humano na rua aberta depois de tanto tempo encoberto. Humberto, lavara-se por baixo com fricções extremas de acreditar em um futuro mais limpo. Pôs sabão a borbulhar na banheira, frescura resplandecente entre o escroto e o ânus. Prazer adiado pelo prazer antecipado. Toda esta limpeza visava a sua determinação.

Altamira passava lá embaixo, passava todos os dias. Levava a rodilha de roupa no crânio, o corpo a incendiar o mundo medonho daquela terra dormente. As suas mamas alçavam o marasmo de Santa Clara até ao escândalo que jamais poderia prever pelo medo de ser expulsa desta nova vida. No jornal da semana passada, um foto sua toda desbotada na patine, desconchavada nas ilhargas das coxas expostas, descrevia o terror do sexo nos habitantes acostumados aos ditames da apatia: - Desejos de Maus-caminhos? Siga aqui para o lado, para a 'Sodoma' dos Casinos e das festas de Verão. - rematava o editorial. - Havia de ser uma guerra entre terras vizinhas que a usava na culatra. Altamira nem sabia ler português.

Humberto desceu as escadas, correu pelas escadas, caiu pelas escadas...era para lhe surgir defronte, mas perdeu-a na subida da calçada. Altamira tinha roupa lavada a levar aos seus donos. Dinheiro a ganhar para alimentar um fedelho qualquer na rua da Agra, junto à esquina do clube de jazz. Desde logo, Humberto, viu-se indefeso no Sol. Havia ali tão pouco para estragar, mas, ele conseguia fazê-lo na mesma. De imediato se pôs a bramir uma lengalenga em pleno andamento, afugentando os transeuntes e colocando-se na ingrata posição de bobo.

Gozava tudo para dentro, sabia lá ele sobre as maledicências de um povo tão pequenino. Dentro da sua casa reinava, na rua, sentia-se menos que a chacota que lhe martelavam aos ouvidos. Por vezes até intentava refutar certas expressões, lutar contra determinadas palavras. Inútil! A comunidade decide quem é quem e ele tornou-se no apóstolo da comiseração da terra, por vezes mais pelo desprazer do deita-abaixo que pelo altruísmo do falso auxílio. Tornou-se em um indigente da plebe. Aquele pobrezinho a quem se dá 2 paus de passagem por medida de nos sentirmos melhor por dentro. - Idiotas! - Humberto, tinha mais dinheiro que todos eles juntos. Mesmo que todos eles juntos não passassem daquilo que são, efectivamente: Idiotas!

Foi ao terreiro, junto ao rio, mirou as águas turvas. Não sabia como proceder adiante. Onde estaria Altamira? E ele cá fora, ao relento, a ser vítima da vilipendiaria das pessoas que por ali andavam a serem gente apenas. Bem que o seu pai lhe avisara destes perigos. - "Queda-te em casa, Berto! Não saías à rua Berto!" - Dizia-lhe. - "Quando eu me for, tens de me prometer agora, de que farás isto que te peço!" Humberto? Ouve o que o teu pai te diz!" - Consoante a passagem dos vinte e sete anos que surgiram depois disto, Humberto acatou estas palavras. A comida chegava-lhe por um estafeta. O resto era ainda mais fácil. A casa ancestral era o seu baluarte. Algum tempo passou e surgiu-lhe Altamira pela janela. Humberto até saiu à rua. Humberto olvidou as regras do pai. Humberto quis tocar-lhe nas nádegas tropicais, como se manuseasse o ouro do Eldorado em uma mão e o Paraíso na outra! Quis dizer-lhe que nunca o amor lhe pareceu existir até a ver a enxaguar um par de calças na rampa com sabão roxo. Quis dizer-lhe tudo o que ouvira o seu pai dizer à sua mãe. Pois era apenas um sorvedouro do passado. Não havia nenhum Presente para este Crica, ele é esponja do que viveu, nada mais. E foi mesmo isso. Nada mais viveu senão os pais.

Acto corrente, surgiu um carro embriagado que vinha do fulgor da estrada da praia. Divisou o bojo inclemente da doca, sem protecções, sem esperança. Um abismo de quatro ou cinco metros, consoante as marés. Guinou à esquerda, corrigiu de esguelha, atirou-se a direito para a bacia de águas turvas. 

Quando Humberto retornou ao abrigo, mais sujo por dentro do que por todo o suor que se lhe colava a camisa aos sovacos e lhe arruinava as virilhas em um pântano, sentou-se no cadeirão do seu pai, ligou a TV. Apareceu-lhe tudo ali estampado em um pânico a cores: 'Automóvel despenha-se pela Doca de Santa Clara. Um ferido.' - "Que seja o motorista!" - Rezou a imitar a mãe - "Por favor, Deus! Faz com que seja o motorista do automóvel." Sentia uma dor inédita no peito. Uma espécie de despejo de toneladas de areia a caírem e caírem sobre si, em um soterrar sem descanso, apertando-lhe a respiração em um nada, um nada, quase.

Foi a correr à janela. - A correr! Corre! Humberto, corre. Mal conseguia mover-se paralisado de provável não futuro. Mas foi. Levantou as cortinas e perscrutou a zona noticiada. Ali estava a doca. Comum, como sempre esteve, dois ou três cidadãos apontavam o lodo como um quadro do Hopper, e a pedra esverdeada em seu redor, como que dizendo: 'Foi ali!' 

Porém, Humberto não queria que tivesse sido ali. Ali era tudo quanto lhe restava de felicidade. Ali era onde costuma estar Altamira. Não podia ser ali, jamais poderá ser ali. Altamira...

Nessa noite, como em quase todas as noites antes, mal dormiu.



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