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A Amélia é grande....ou, A Amélia foi grande!


 

A morte acompanha-nos sempre no seu avanço inexorável. Cai-nos dos telhados, ergue-se de solos nunca consagrados, mata-nos pelos flancos, os lados desprotegidos, aqueles lados onde achávamos que tudo correria pelo melhor, sem que nos apercebamos que findamos aos poucos. Dá-nos as mãos, invisíveis à percepção. Tira-nos o nosso bem mais precioso, a razão. A morte sabe muito mais do que nós sabemos e mesmo quando parecemos saber alguma coisa, ela engana-nos e reergue-se. A morte é deus! - O único deus possível.

A minha tia Amélia foi uma força da natureza. Foi-o. Divorciou-se de um homem que a maltratava, em um tempo em que as mulheres ainda viviam convencidas de que estes sofrimentos faziam parte da existência feminina comum.

A luta restringia-se a algumas (poucas) heroínas, sobretudo se se tratasse do Portugal de então. Daquele Portugal ainda lazarento, mas já tão próximo da revolução. Porém, como poderia a minha tia Amélia saber disso? - Eu próprio, seu sobrinho e afilhado, detentor ainda do tradicional hábito de aceitação do nome do padrinho, seu ex-marido, assisti-lhe à rebeldia em tempo real, mesmo que, nessa altura, ainda fosse um bebé de colo, senti-o em ondas tremendas pelo futuro dentro, e agora, vejo-me incapaz de o ignorar.

Divorciou-se mormente, desprendeu-se de tudo e emigrou. Na França, reinventou-se mulher nova. Renasceu e jamais pôs travões no que poderia alcançar ou querer. Foi uma serva, é bem certo, contudo era-o em França, onde nem sabia a língua ou o léxico da diferença. A minha tia Amélia tinha a quarta classe, sabia falar português, mal escrevê-lo. Durante anos assumiu-se como analfabeta da sua pátria, porque só quis esquecê-la e recriar-se francesa absoluta.

E, até certo ponto, conseguiu-o na perfeição. Benquista pelos seus patrões, os primeiros, conseguiu habilitações para se tornar governanta, em Paris, em uma casa de intelectuais abastados, que viviam a poucos metros da Torre Eifell, na 'Rue de la Pompe". Haveriam de ser estes, em simultâneo, os seus grandes benfeitores e as suas melhores alavancas para a edificação da mulher que sempre conheci.

A "Mademoiselle Amélie" não era apenas a minha tia Amélia, única irmã da minha mãe, e mulher singular na minha família, por se ter divorciado e por se mostrar mal agastada com tudo aquilo que a vida, de mal lhe havia atirado. A "Amélie", era igualmente a única porta que conheci para um mundo maravilhoso que se chamava 'França'. Um Universo de presentes que me chegavam em uma mala de cartão, e de sabedorias que irradiavam daquela mulher lutadora, nunca desistente, nunca alheia à família, ou aos seus valores mais intrínsecos. Uma mulher grata pela sua reinvenção. - As visitas que lhe fiz, em Paris, ainda estão para mim, como algumas das melhores viagens que já fiz.

Os anos avançaram em torrente, de visita em visita, de abraço em abraço, de discussão em discussão - a minha tia ainda acreditava no Salazar - terminou o tempo da emigração, a França acabou-se em um pergaminho notariado; chegou o tempo da "retraite" e, "Mademoiselle Amélie" regressou definitivamente a um outro Portugal, novamente em crise, em tantas crises que irradiavam pelos tecidos humanos como fungos nocivos a asfixiarem tudo e todos. (Quase todos!) - Ela jamais se arredou. Nem fazia crença em tal coisa. Todos os tostões amealhados, a casa paga, a vida era para diante. A crise era uma coisa inventada pelos comunistas. - Divergimos, certamente, no entanto, e contra tudo o que lhe atirava, sem retorno inteligente, só não lhe arremessei a minha admiração, por orgulho besta. Muitas vezes a razão só nos atrapalha os afectos.

Depois, nasceu-lhe 'a doença'! E esta foi-lhe cruel. De início as dores eram nulas, mas os efeitos avassaladores. Uma vez deitou um balde de água suja pela varanda do segundo andar para uma das praças mais movimentadas deste burgo. De outra, adormeceu na varanda, enquanto um tacho queimava infinito no fogão. A morte achegava-se, e a Amélia já nem dava conta. As dores tramadas seguiram-se, já ela em um lar. Os últimos meses autênticos carrascos. Um lento acabar no oblívio total. Pensava que por estes dias já não se podia sofrer tanto, enganei-me.

Foi hoje a enterrar, por cima dela, os ossos da minha mãe, sua muito querida irmã. Antes de se trancar à chave o caixão levantou-se o véu e ela tinha um olho semi-aberto. Parecia piscar-nos o futuro todo, contra as adversidades. Justo como nos ensinou por método prático em vez de palavras.

Depois de tudo bem escrito e mal contabilizado, após todas estas palavras lamechas, todos estes chorrilhos excessivos que a mais ninguém importam, senão a quem os viveu e sentiu, e de facto, passando todas estas linhas pesadas em branco, e pesando-as na eterna balança inconstante dos afectos, estranhamente, e, no que à "titia" me diz respeito, sabia que teria de ter uma música que ma lembrasse. Pensei no hino do Rancho da Praça, mas esse levou algumas machadadas desde os seus dias como integrante dançarina/cantora, assim que, só me consegui recordar de uma música; "Fame", da Irene Cara. Não parece ajustar-se, é tão brega, mas, para mim faz sentido. É o refrão, sabem? - "Remember, remember...remember..." ad eternum. - Vou lembrar-me sempre, tia. 

Sempre, sempre, sempre serei o teu...

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