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O fim da Garrafa

 

Nada disto é poesia. Sinto-me apenas só e desesperado. Só e incerto por dentro. Sinto-me já morto, antes do descanso da morte. O que é isto? Morri, e ninguém se apercebeu? Estou tão vazio. Oxalá alguém me dê um soco na cara e me faça sangrar pelo nariz, pelo canto impreciso do olho esquerdo. Preciso sentir algum correr sanguíneo, alguma presença palpável de vida a escapar-se-me do corpo. A hipótese é a de que assim, viverei ainda. Que estou vivo, vivo! - Caralho! Estarei vivo, ainda? - Só sinto sangue na boca.

Ontem foi quarta-feira e bebi quase um litro de whisky. Quando é que rebento por dentro e me sairá tudo da carne provando-me a sua existência? Hoje, continuo. Já vou a meio do vidro cristalino de onde o âmbar mortífero se escapa para o copo, para a boca, para o fígado, para a morte...Demora tanto. Havia mais era de ser Homem e atirar-me na frente de um comboio, abaixo de um prédio, afogar os pulmões no mar tão belo. Havia era de ganhar tomates para vender a minha biblioteca e comprar uma pistola com uma bala, uma só bala, uma bala só, como eu.

Hoje é quinta-feira e está tanto Sol lá fora que me parece queimar o toque do mundo. Tomara que chovesse outra vez. Quando chove parece tudo mais calmo cá dentro. Não sei. O meu fim prematuro sabe a alterações climáticas. Gostava que chovesse todos os dias, que surgissem tempestades e premonições do fim do mundo. Gostava de me acabar junto com o mundo, para parecer que lhe pertenci, de algum modo. Já só resta me um fundinho desolador na garrafa, pessoas correm por prazer lá fora, não chove e decidi criar uma página no facebook dedicada à venda de livros usados.

Nada disto é poesia. Genuinamente me entrego a esta desolação diária, e acovardo-me face à rapidez de uma morte definitiva. Tentei uma vez, saiu-me tudo preto do estômago e fugi vestido com uma bata de hospital que me mostrava o cu. Agora, acabo mais uma garrafa, acabou mesmo, já, neste momento, e aguardo a explosão vital de um orgão, na sua rota final. Haverão formas de morte para suicidas caguinchas? Provavelmente alguém já terá escrito algum livro sobre isto. Deitei abaixo a minha página de venda de livros usados. Continuo a procurar livros usados que me ensinem a ser o perfeito suicida. Se tenho de morrer, quero morrer em condições, como sempre vivi. Com regras. Nada dessas mortes estabalhoadas, na linha do metro, a planar desde um dos prédios gémeos ilegais de Vila do Conde, a atrapalhar os pescadores das Caxinas com um corpo inchado a afugentar os peixes.

Se for para morrer, morrerei nos meus termos, não vivi nesses mesmos termos, porque haveria de vos conceder o mesmo à minha morte? Não cortarei os pulsos, aflige-me a visão do meu próprio sangue. Não espetarei uma faca no coração; receio falhar o lugar exacto. Não tomarei mais barbitúricos. Insisto em que não me voltem a ver o cu. Não existem lugares propícios cá em casa para um cadafalso improvisado e os venenos, ainda que fáceis, enojam-me. Abri uma nova garrafa de whisky. Eu morro, esperem para ver. Eu morro. Já tenho a fadiga, as náuseas, os edemas e a ascite. Por vezes sinto pruridos. Quando finalmente começar a sentir a falta de apetite e a falta de peso, saberei que finalmente, terei a paz que tanto procurei nestas garrafas.


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