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O Cisma do Meio-Século

 

Todos os aniversários não são iguais. Quer dizer, todos os anos se tingem com um aniversário, é inevitável, mas nunca são da mesma cor interior.

Este meu último, que foi ontem, pareceu-me mais escuro que o costume. Eu sei porquê. Não venho aqui aviltar ingenuidades. Foi-o pelas razões do costume: a minha aversão às pessoas em geral, às convenções sociais em particular, ao trato comum de entrega que traz retorno, a essas 'caixinhas' que todos trazem dependuradas na humanidade e que acabam pontilhadas nestes justos momentos. Falta-me a vontade de me imiscuir com o resto das pessoas que me compôem. Família, amigos, quase-amigos, relacionamentos, conhecidos...todo um rol de gente que me povoa a vida-carne, que, para mim, nunca chega a ser a vida-alma. É um defeito! Afastar-me, salva-me a posição inerente àquilo que de mais humano pode ter um humano, entregar-se sem barreiras ou rodeios. Sem restrições. Mais uma vez; como não me afundo na inércia de ser ingénuo ou hipócrita. Ou hipócrita, sim. Pois soa-me que muitos o fazem em contra-mão, apenas porque são notórias as vantagens de nos entregarmos incondicionalmente, não o faço. 

Eu não! Porém, como em quase tudo que constrói uma existência, sinto um fiozinho de remorso, sobretudo em dias de aniversário. Em especial em dias de aniversário redondos, como o de ontem: Cinquenta anos! Cinquenta. Não sendo eu um sociopata funcional, ainda que o aparente consistentemente, assalta-me a falta de empatia de alguns, por mim, em data tão significativa como a dos cinquenta anos. Cinquenta! Quer queiramos, quer não, e, independentemente daquilo que somos já formados e constituídos, vagamos sempre algum espaço para a empatia normal, nestes dias, ou pela falta da mesma, derivado daquilo que cultivámos ano sim, ano sim, até esse instante.

É como se fossemos lésbicas selvagens, sem freio na tesoura que une vagina a vagina. Há ali um ímpeto que pede a satisfação contra-natura. Não existe encaixe possível, todavia nada as impede de procurarem o prazer absoluto nesse contacto da carne. Sinto o mesmo, pois não me ajusto a ninguém, mas busco trazer à balha o prazer insólito que preciso, nestes dias só meus. - Não trago acusações desta vez, ninguém merece a minha culpa transmigrada. Sou o que sou, e, suponho que já terei idade suficiente para viver em paz comigo mesmo. Contudo, e há sempre uma conjunção neste tipo de crónica intimista, se já sofro por me meter a ser o que sou, mais sofro ainda por expectar um resultado diferente face a dias como o de ontem.

No fundo o que é que eu esperava? Foguetório e congratulações desmedidas? No Sábado um grupo restrito de amigos organizou-se em um jantar surpresa para me celebrar. Houve beijos e abraços e presentes. No Domingo, a família inteira se reuniu para um almoço de aniversário. Mais uma vez, se esquecerem os medos da pandemia e logo despontaram mais beijos e abraços. No Facebook, essa fossa asséptica de fácil acesso, houve um desfiar de mensagens fáceis pelo feed abaixo. Tudo fruto do que ali plantei no dia anterior para que lhes facilitar a memória e a humanidade espontânea. Bem vistas as coisas, tive apreço suficiente para dois ou três aniversários, neste apenas. Mas, não me bastou. Nunca me basta. Todas as cores parabenizadas me pareceram desbotadas, armadilhadas, forçadas até. É que no Facebook o facilitismo é encorajado. As pessoas são avisadas acerca de quem devem ou não parabenizar nesse dia, e alguns fazem-no e outros não. Serão aquelas que o fazem por regra mais ou menos falsas, do que aquelas que jamais o fazem, mesmo que partilhem o mesmo universo algorítmico que as anteriores?

Vejo-me sempre corroído por estas questões menores e torno-me incapaz da normal humanidade por isso mesmo. Não consigo acreditar na veracidade daqueles que me congratulam, apenas porque o fazem sempre e isso parece-me falso, comprometido. Assim como também duvido dos que nem me interagem a esse momento. Que espécie de gente não expressa a sua intenção de celebrar o cinquentenário de um 'amigo'? - Desde logo, esta minha obsessão-compulsão é, e sempre será a minha perdição. - A ignorância é realmente felicidade. No instante que pensamos mais profundamente nas coisas, perdemo-nos para sempre nesta teia de dúvidas que só carrega infelicidade. 

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