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As Lágrimas de Portugal

 


Da esplanada do velho café da minha janela saboreando um whisky aguado com direito a comiseração a vapor, vi do outro lado da praça uma mulher à janela, arejando um tapete ou um cobertor ruço ou o que fosse de pano, não importa realmente. O que me importou era o que tinha atrás de si embutido na parede. Era o Menino da Lágrima, na sua pose estática tão conhecida e familiar, como se estivesse, nesse preciso momento, a fazer de modelo para todos os infelizes do mundo que vertem amiúde, ou sempre? a desdita inconsolável que os assola. - Quem se terá lembrado de o pintar assim e porquê? - É uma questão pertinente, penso.
A pergunta imediata que me assombrou foi: Afinal, quem é que ainda ostenta o Menino da Lágrima, sem ter um espírito irónico ou 'kitsch' ou ser mero amante da pop-art trash? 
No fundo, quem, em 2022, persistirá em manter este retalho de carnaval feirante pendurado em uma parede da sua casa, fazendo-o quase que por devoção a uma tristeza imaterial que requer representação, por indevida que seja, como se fosse importante mantê-lo pelo que implica sobre o que somos, ou como somos e não pelo exaustivo sarcasmo mental gasto pelas tribos niilistas de 'hipsters', que acham 'avant garde' exibir assim as ditas lágrimas do famigerado Menino.
Tudo isto pensei, no decurso daqueles breves segundos viscerais de onanismo visual. Foi mais a surpresa de ver o quadro do que a mulher a sacudir o tecido em causa. E ela sacudia-o vigorosamente, asseguro-vos.
Veio-me tudo à cabeça pois os meus pais também o 'veneraram' a seu tempo. Houve um Menino da Lágrima na casa da Azurara. Na ancestral casa onde nasci e cresci, vivi anos e anos a 'adorá-lo' também, sem querer. E é por isso que o Menino ainda hoje me sobressalta tanto sempre que o vejo. É como se fosse um legado, uma herança à qual não me consigo distanciar. Ele ali esteve, por demais, tal qual a Mona Lisa desbotada da feira, e os oceanos de veleiros sem descrição específica que se podiam adquirir pelo preço de um par de peúgas. 
Terei visto a minha própria infância e juventude naquela vislumbre pela janela de uma estranha, ou haverá muito mais adstrito à normal perenidade portuguesa de quem adjudica ao Menino da Lágrima, a condição de querer existir como arte?
É que, inadvertidamente, e quer queiramos quer não, continuamos a ser um povo rústico por natureza. Somos sulistas em relação à Europa, não os únicos, mas talvez os mais sulistas de todos. E sabe-se bem que os austrais de qualquer lado, albergam certas peculariedades que os setentrionais não, (o vice-versa também é verdade). Igualmente, há que ter em conta a noção darwinista da coisa. Podemos assobiar para o lado e fingir que não, mas, continuamos a ser um povo muito dado à sacralidade, aos misticismos fungados no escuro, e em adição a isso, por crença franca ou sarcasmo descabido, continuamos a valorizar o que é dado adquirido como sendo digno, e por ausência de uma explicação mais racional, parece-me que, o Menino da Lágrima, assim o é. Exactamente.
Não possuo nenhum Menino da Lágrima, original? ou de qualquer possível modelo. Não tenho pendurada em parede alguma da minha casa, nenhuma 'obra de arte' dessa concepção pseudo-realista aproximadamente de escárnio ainda que me sinta mais que certo de a compreender, não. Quiçá esse gene de tanto "drama e horror e tragédia" me tenha saltado adiante, ou é bem possível que esse quadro perpetuamente medíocre que tanta gente contaminou, (os meus pais inclusive) nunca o tenha feito realmente a mim. Sou bem capaz de ter pensado pela minha cabeça e concluído que o Menino da Lágrima nunca chorou por mim e assim não me fez sentir à vontade de chorar em coro com ele ou com aqueles, como aquela senhora que sacudia as passadeiras, que com ele ainda se comovem. Como se aquele garoto fosse uma espécie de sorvedouro de 11 milhões de pessoas em pré-depressão, emocionadas pelo que seja, mesmo que o que seja venha a ser uma banha da cobra a óleo.
Assim que, todos as possíveis lágrimas que dele escorram, jamais me comoverão desse modo, emocionam-me de outro, não o nego. Nas minhas paredes ostento quadros exclusivamente de amigos e estes alegram-me quase sempre, na sua beleza. 
Em adenda às minhas próprias, que advêm do que a vida insistiu em não me preencher os sonhos, nenhum Menino, nem ninguém de igual modo, me encaixa na sua própria desolação. Não sou de modéstias e considero-me medianamente culto, isso basta-me. Mesmo que não me considere menos português por me entregar ao que ser-se português acaba por ser; seja a adoração irracional ao Menino da Lágrima ou à Nossa Senhora de Fátima que brilha no escuro, ou às flâmulas  de adventos com o coração de Cristo entregue aos elementos. Sinto-me grato por só escrever sobre isso, ponderar sobre isso, e não cair na desgraça de sacudir uma manta à vista de todos, tendo essa vergonha pendurada atrás de mim.
Basta-me a minha própria vergonha. Que é minha e só minha. Como por exemplo, a vergonha de estar a mirar uma estranha, no outro lado da praça e depois usá-la para escrever um texto que ninguém irá ler. Mas isto talvez seja tema para uma outra crónica.

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