A morte aceita todos, é o que a faz ser tábua rasa da realidade de qualquer um. No dealbar de um novo ano, já leva o seu quilo de carne no rol. Tantos dias pela frente ainda...Em tempos ansiei por um documentário que ma explicasse até ver um filme de ficção e perceber que a realidade tudo imita quando é bem filmada, até a explicação da própria morte.
Perdi a conta à soma de documentários sobre cinema que assisti, sobre os nichos do cinema, mas também sobre as mais decentes explicações específicas e muito pessoais sobre o que o cinema é, na perspectiva das diferentes interacções que cada um entrega ao seu próprio cinema, à sua ideia de cinema. Pois o bom documentário cinematográfico é também, em si mesmo, bom cinema. Quase ficção. E, na sua maioria encontrei a voz e/ou o rosto do Peter Bogdanovich.
Realizador de mão cheia, ainda que malogrado e desiludido. - Como não me identificar com ele? Será arrogância da minha parte ou pura empatia; - não cito títulos, são óbvios, alguns mais do que outros, alguns mais documentais que outros, implicitamente dignos de constarem nesse incontável rol de documentários sobre o "cinema", em que ele figura suprassumo. Bogdanovich viveu o cinema mais do que muitos, estudou-o até ao seu mais brilhante (ou rançoso) tutano, e por isso se sentiu incapaz de continuar a realizar com a pujança de antes. Actuou, fez alguns 'cameos' naquilo em que só a sua presença poderia elevar acima da mediocridade. Foi incansável: escreveu, produziu, editou, fez bandas-sonoras. Foi segundo director em filmes menores, perscrutou locais de filmagens, fez de tudo um pouco pelo amor da sua vida: o cinema.
O seu último grande filme foi "Texasville" uma sequela ou, mais intrinsecamente, um simples e adorável retorno ao seu filme maior; "The Last Picture Show". Como se se sentisse incapaz de largar aqueles ricos personagens no vazio do passado, impossibilitado de filmar novas histórias (e teria tantas para contar, acredito) regressou ao passado que o completou melhor. Ao passado onde mais feliz se sentiu, como forma de não os deixar morrer, intentando explicar-lhes o percurso dezanove anos depois. - Não foi completamente possível, mas que viagem é este filme para um cinéfilo seduzido. Tanto desencanto, tanta esperança desperdiçada, tanta efémera intenção que ficou só por isso. Muito difícil vermos esse filme e não assistirmos à vida como nós todos somos. O progresso inexorável da idade e de como esta nos destrói as francas esperanças de atingirmos um futuro idealizado, tantos anos antes. O passado cataliso de algum bom momento das nossas histórias, como também daquelas histórias. O passado como cataclismo anunciado do que o nosso futuro adviria. Mas o encanto, sobremaneira, o trilho possível de futuros, tudo isto se enuncia naqueles jovens em 1971, que vemos envelhecidos na sequência das suas vidas (das nossas vidas) em 1990.
Na verdade, antes de me apaixonar pelo seu próprio cinema, caí seduzido pelo seu amor por este. Foi ele quem me ensinou a ser cinéfilo e não lhe perdoo ter morrido ontem, sem me dizer quase nada sobre o seu próprio futuro.
Eis alguém que entrevistou John Ford e Howard Hawks. Que privou com John Huston e Orson Welles..monstros! Todos eles grandes monstros do que em tempos foi o melhor que a América nos presenteou à laia de cinema. - E é também em um cinema, isto é deliberado, que Bogdanovich depura todo o seu arsenal de grande cinema. - Eis alguém que não conseguiu jamais contemplar outro percurso para a sua vida que não envolvesse o cinema. Como não me apaixonar por alguém assim? Peter Bogdanovich presenteou-me com a possibilidade de amar uma arte onde nem sequer me envolvi profundamente até o ouvir. Se hoje amo o cinema a culpa reside em cinéfilos inveterados como Martin Scorcese, Quentin Tarantino, Eli Roth..mas primordialmente: Peter Bogdanovich. - São 228 créditos em documentários, especiais de TV, Mini-séries, curtas, podcasts e vídeos sobre e acerca do cinema em particular e em geral que este homem participou. E é assim que para sempre o hei de amar. - Pelos seus próprios filmes também, claro. Ele foi um 'realizador"!
Sei que muitos tampouco conhecem este nome. Dá pena sabê-lo, pois amando o cinema a notícia da sua morte nos toca realmente. É como se nos morresse um mentor ou um pai. É como se nos morresse o cinema por dentro!
Peter Bogdanovich (1939-2022) |
Comentários
Enviar um comentário
Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.