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A Eleição do Medo

Ainda que o meu voto tivesse contado. Ainda que o meu voto contribuísse para a eleição do candidato. Ainda que o meu voto não esperasse na fila mas fosse célere e eficaz, digno de qualquer contentamento possível ao votante. Ainda que o meu voto progredisse realmente a democracia em Portugal. Ainda que o meu voto contrariasse o rumo natural da predileção política familiar, e, mesmo assim, não criasse cissões, rupturas nesse tecido tão delicado. Ainda que o meu voto fosse único, impopular, consciente, ponderado, surpreendente.. Ainda que o meu voto fosse tomar um café depois de cair na urna, satisfeito o meu voto, por ser, por existir...Mesmo que tudo isto seja verdade, sinto-me contrafeito à mesma.

Desagradam-me as decisões generalizadas do povo, que se assusta e mesmo assim elege o terror que se antecipa à dúzia. Que castiga, e afasta tantas vozes importantes do lugar onde a verborreia mais conta, apesar de sempre demagógica. Apesar de sempre cíclica, conta. Faz mossa, aqui e ali. Barra o absolutismo moderno, o fascismo encapotado. Faz sentido, ou fazia, pois, depois da noite de ontem talvez já não consiga mais fazer. Desaprovo um povo que não se importa com as substituições, como se comprasse bacalhau online e lhe dissessem que já não há postas, só badanas, e aceita-as, por preguiça. Desgosta-me um povo que oferece o absoluto por receio do condicional. Nenhum povo haveria de se espreguiçar assim tanto, só para não ter de caminhar alguns passos de pura luta. Tudo isto me descontenta, apesar de ter vingado o meu voto, e este desprazer provem da raíz da nossa própria Democracia. O nosso sistema, ou qualquer um sistema democrático eficiente, jamais haveria de provir de maiorias absolutas. É que a política assim abarca-se demasiado tentadora para um caminho onde já nada conta realmente, excepto a visão afunilada de quem decide nessas circunstâncias. É muito difícil conciliar-se seja o que for, quando se detêm todo o poder nas mãos.

Assim que, é com pesar que reconcilio interiormente os resultados da noite eleitoral de ontem. Ainda que o meu voto tivesse contado, como contou. Ainda que o meu voto tivesse contribuído para a eleição do candidato como o fez. Ainda que o meu voto não caísse nas malhas de nenhum populismo, de nenhum actual agravante tingidor de imagem. Ainda que o meu voto não fosse atrás das multidões ensandecidas, dos gritos eco dos desfavorecidos, das palavras certas no lugar certo, das sondagens manipuladoras, dos altos e baixos de alguns candidatos mais intransigentes, da não razão, da apatia presidencial que procura harmonia mas cria instabilidade. Ainda que o meu voto fosse Portugal inteiro, mesmo assim, e depois de olhar para o mapa de cores do hemiciclo parlamentar, coloco-me na mesma em posição arrazoada, pois seguir-se-ão quatro anos após esta noite, e se não retornar o Cabrita na pior das hipóteses, ao menos espero que o discurso de vitória não tenha sido mais um discurso que de nada serve, excepto prenunciar um mau futuro próximo para o meu país preguiçoso e amedrontado.


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