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Tudo branco pelas paredes negras.

 

Ouvir o álbum branco dos Beatles enquanto encarreiro cigarro atrás de cigarro é um bom artifício de contrição contra a apatia que muitas vezes a vida nos impõe. O álbum branco aqui é meramente inconsequente, como qualquer outro o seria. Mais me importa a nuvem de tabaco que produzo e que a tudo se agarra. Aquelas garras de águia nevoeirentas trazem-me a distância da memória junto ao peito. O meu pai fumava em casa. O meu pai fumava na sua oficina de alfaiate. O meu pai fumava imenso, fumou até quase à minha idade actual, quando um médico lhe ditou uma sentença da qual não se pode esquivar. Depois desse dia, o meu pai jamais prendeu um cigarro nos lábios. 

Porém, até então, o meu pai fumou muito. Sempre me pareceu um prazer simples que o agradava. E, nunca sequer, suspeito, ouviu o álbum branco dos Beatles enquanto baforava qualquer coisa e bebia muitas outras. Com ele na oficina, fumavam o meu tio, tanto ou mais do que ele fumava, tanto, tanto que o matou pela garganta, ou pelo peito, já nem sei. No fim, respirar, para o meu tio era o equivalente a deixar de fumar, um suplício. E, desse modo de ser férreo, aconteceu que o meu tio fumou ainda uns bocadinhos, às escondidas depois de velho e até depois dos ditames que lhe firmaram o fim. Fumou ainda a espaços, para que ninguém descobrisse que não era morrer o que ele queria, era fumar, apenas.

Todos os restantes 'aprendizes' que pelo 'Novo Mundo' passaram (era o nome da alfaiataria), fumavam muito também. Um dos mais consistentes, magnífico fumador inveterado, era tio da minha mulher, que então, não passava de uma ilustre desconhecida para mim. O tio da minha mulher faleceu pela quase mesma determinação que a do meu tio. Sobraram o meu pai e um outro 'aprendiz', mais recente, que não fumava de todo, excepto em segunda mão. Nem o tio da minha mulher, ou tampouco o senhor não-fumador que constituíam aquela trupe de artífices consta-me alguma vez terem parado em algum lugar do tempo para ouvirem com ouvidos de escutar a sério, o álbum branco dos Beatles. - Como referi anteriormente, é inconsequente. - Continuo a fumar e a beber, no tecto, por cima da minha secretária, estende-se uma mancha que chega longe, justo até ao meu passado.

Confesso que nunca ouvi o álbum branco dos Beatles do princípio ao fim. Só aqui e ali uma música ou duas. Prefiro o "Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band". Hoje é Sábado, quase 5 da tarde, bebi e cantei quase todas as músicas. Fumei para cima de meio maço de cigarros desde as 9 da manhã. Vou a caminho do passado, de braços abertos.

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