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O Neiva junto ao Ave

Recordo-me bem do Cine-Teatro Neiva por si mesmo, o velho cinema de alcatifa puída e manchas de esperma e cuspo ressequido nos cromados. Fui duas vezes ameaçado de morte ali dentro, por mor de ser um piçinhas de Azurara que lavava as mãos depois de urinar e pedia as coisas "por favor". O Papel de parede descascava aqui e ali, fruto da humidade e os lavatórios fediam a uma cinefilia sem paralelo por toda a Vila do Conde. Recordo-me da sua pureza simplista e utilitária, bem antes de cair em desuso, ser esquecido e abandonado à ruína e por fim renascido, como uma fénix ímpia, que serve alguns em vez de todos. 
É quiçá contraditório isto, eu sei, mas hão-de perdoar-me o saudosismo 'porco' de amar um cinema mais comum, mais humano, mais feio, em detrimento de um "Teatro Municipal" que brilha mais nas lajes de mármore do que nos conteúdos programáticos. - E mesmo que assim fosse? - Muitos anos depois, já se havia constituído um bom caminho para os amantes do cinema de autor no espaço do Solar dos Vasconcelos, também denominado de Auditório Municipal. - Não bastava às elites, era preciso elevar aquilo a um festival, maior grandiosidade, fundar algo que lhes entronizasse os egos. Surge aqui o gérmen da recuperação do velhinho cinema UUU...
Quem me conhece sabe sobre o meu amor incondicional pelo bom cinema. Quem me conhece bem, sabe também sobre as minhas fidelidades a ideias, usos ou costumes que não são mais admitidos. O Cine-Teatro Neiva, como era, abarcava ambos.
Pois amo do cinema, tanto a sua santidade como as suas excrescências. E quem amar o filme, a arte do filme, jamais me poderá contradizer. O Neiva, não era um cine-clube, era um espaço para o cinema saído de Hollywood, de Pinewood, de Bollywood, da Cinecittá, de Nikkatsu, de tantos espaços pelo mundo fora que faziam cinema para as massas, para o entertenimento.
Parecia ele próprio um cenário de um filme. Lá estava o pedrame do dístico na padieira do edifício, altaneiro, orgulhoso do seu mistério (que mantiveram na reconstrução, mesmo à mão de justificarem as sua próprias fraquezas). Dizem que aquele UUU reflectia o analfabetismo e tartamudez do mestre de alvenaria, que encetava os dizeres: "O Cine-Teatro Neiva", mas que, por graças das suas limitações adejou lá por cima uma eternidade. - Ficou para sempre nas nossas memórias UUU Neiva. Mas isto são má-línguas que pouco gaguejam quando envenenam. São as memórias que mais contam as verdade em que queremos crer.
Para mim, aquele abandono e subsequente rasgar de máquinas sem alma pela pedra sagrada da minha juventude, soou-me a terrorismo. Como se me roubassem a normal decadência em Technicolor.
O Neiva irradiava-me a génese dos perfeitos Domingos. Onde eu, e os meus amigos, dávamos passeios além da ponte e alcançávamos o Paraíso.
Palavras brancas caídas das legendas dos filmes, risos abafados, matinés, declarações de amor, lágrimas disfarçadas, noites de sábado por vezes, bilhetes de 3º balcão (pois não conseguíamos jamais ganhar assento na plateia) amarelecidos pelo tempo que ainda guardo em uma mica, cartazes com deuses e deusas de carne e osso ou solitários vingadores brejeiros como o Chuck Norris ou o Sylvester Stallone, alguns beijos ainda a preto e branco, perseguições de automóveis a cores, o bigode do Tom Selleck, os olhos da Nastassja Kinski, o chicote do Indiana Jones, a voz do James Earl Jones como Vader, as personagens do Scorsese e três letras repetidas incansavelmente no fim de cada sessão.



Fotografia Adriano

Fotografia Adriano

 

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