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Tolerância à lactose lida.

 Quando era novo, a minha mãe comprava meio queijo limiano todas as sextas, que, em princípio, seria para todos lá de casa, mas eu gostava muito de ler: "As Crónicas Marcianas", "Viagem ao Centro da Terra" e todas as revistas de Super-heróis que comprava no quiosque do Altino com uma mão, enquanto comia queijo, desbragadamente, com a outra. Assim, o queijo acabava-se em um instante. Muito, por que lia tanto quando era novo, até mais do que agora, apesar de continuar ainda a comer imenso queijo. O Freud talvez fosse capaz de explicar isto, mas o Freud serve para tudo. Face a qualquer tribulação, vem o Freud em auxílio, explicar tudo. O Freud e o Fernando Pessoa, que tinha tantas sombras diferentes, que qualquer inexplicável ele me resolvia. 

Fui adolescente desde muito cedo. Não tive período de infância, comecei a trabalhar para ser homem, novo, e a estudar todas as leituras possíveis com uma curiosidade infinita. Mas tive uma sorte espantosa, porque tive amigos - que, diga-se de passagem, não eram muito aficionados à leitura, mas gostavam de queijo, todos eles: de quatro fui o único que ficou agarrado aos livros -, com0 um homem fora de série, o Humberto Crica. Claro que isto não pode ser muito bom, qualquer um que se auto-denomine em um sinónimo tão unguento e húmido, está a pedi-las. Ninguém se preparara para tal, e muito menos em um arrabalde como Vila do Conde. Daí surgiu o inevitável opróbio, a castradora indiferença - O Freud aqui também faria falta. - A minha mãe dava falta do queijo, sim. Todavia, como a grande maioria das mães, injectava alguma da sua perseverança na capacidade do único filho que se entregara de corpo e alma à leitura, como se este acto, o de ler, fosse o cataliso para uma grandeza inexplicável. Aos Treze anos, substituí, no meu curto quarto, as duas prateleiras destinadas à colecção de latas, pelo livros que fui lendo e acumulando. Pareceu-me exacto entregar-me a eles. Pôr a minha compulsão ao serviço de uma mente que se expande, em vez de um arremedo de alumínio colorido que nada de especial me ofereceria no futuro. Recordo-me de ter andado à bulha na praia de Azurara, com um Holandês bem torneado nos gêmeos, por uma lata de "Pabst Light" que descartara à areia no tempo de um arroto. Curiosamente, trinta anos depois, vi-me envolvido em acesa contenda com um licitante da baixa-da-banheira, em um leilão online, pela aquisição de um exemplar muito bem conservado de uma edição para bibliófilos, de: "Ana Karenina", do Tolstoi. - 200 exemplares em papel Bouffant Extra, creme, numerados de 1 a 200, da Livraria editora JOSÉ OLYMPIO do Rio de Janeiro, de 1943. - Ganhei-o, por um triz, e hoje retrocedo ao tempo em que lia mais do que agora como queijo, muito embora possua mais e melhores livros por estes dias, do que o meu cólon admite no processamento da digestão do queijo que ingiro.

Veio a ser a minha vida mais concisa, o acto de pegar em um livro e vaguear por onde me apetecesse. Do Julio Verne ao Platão, passando pela incontornável leitura dos componentes inclusos em todas as latas que coleccionei, ler, foi e é, ainda, a minha definição como indivíduo. Está na génese da folia de me ter deitado a escrever, está também na minha formação como sujeito social. Foi nos livros que sempre me senti mais à vontade, não junto das pessoas pelas ruas. Será petulância, isto? É capaz. Contudo, e por ser a impulsão-compulsiva uma grande parte da minha natureza, não vejo grande saída para a existência ausente de livros. O meu prefixo de vida passa por eles e rejeito tudo e todos que não entendam a necessidade e urgência da sua existência. Imagino essas pessoas como alguém empanturrado de queijo, de tal forma, que se esqueceu de todo do paraíso.

E sei, obviamente, que a minha mãe me perdoou todos os meios-queijos que devorei entre leituras vorazes. Sei-o, porque ela foi infinitamente mais sábia do que qualquer autor que até hoje li. E isso pegou-se-me, fez-me melhor, mais esclarecido por sabê-lo, do que por todos os incontáveis livros que até hoje li. Assim que, ler sim, mas viver e absorver tudo do melhor que nos rodeia, é, certamente, a melhor formação que qualquer ser humano poderá almejar. Muito mais que um mero sofá aconchegante, um livro do Jorge Amado em uma mão e uma tosta tripla de queijo na outra. Nesse equilíbrio é que reside o preço da felicidade. A tolerância absorta a qualquer empecilho que a vida nos atire.

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