Avançar para o conteúdo principal

As Crónicas do senhor Barbosa XVII

 

Aquela Lua de Outubro vinha levantando-se medonha nas últimas noites. Imensa, grotesca de tão bela, e não havia maneira de a evitar. Caía-lhe mal, quase como os fritos. Às sua custas, andava o Senhor Barbosa tão mal dormido que ganhara uns sulcos marrons, raiados, por baixo das habituais olheiras de má-disposição ao absoluto.

Para completar o quadro burlesco daquele lar desavindo, a pobre Madalena agora recorria a muletas para tudo. Fosse para lhe pedir que despejasse os cinzeiros, a areia dos gatos, a sua incomensurável frustração, para ir às compras na Cooperativa, rogar o que pudesse no altar da N.Senhora da Lapa, ou inclusivamente apenas circular pela casa, em um passo metálico de lesma, com uma borracha de permeio.

"Cabra!" - Pensou o Senhor Barbosa - "Sabia sempre como rasteirar um homem." 

Se pudesse, dar-lhe-ia uma mão. Até se atiraria a esfregar e a aspirar. Embrulhar-la-ia no regozijo de uma latrina de gatos fresca e cheirosa. Comprara daquela areia brilhante que ensopava o fénico do mijo e reduzia os cagalhotos a croquetes. Se pudesse, sim, fa-lo-ia...Não podia! O Senhor Barbosa tornara-se prisioneiro da sua própria felicidade. Fora estranho e solitário, depois apenas estranho e agora, já não conseguia ser de forma nenhuma. Talvez fosse por causa do optimismo, ou do calor sufocante daquele Outubro. Quiçá fosse aquela Lua. Era mais uma aventura para contar. No meio de tantas estórias insignificantes haveria de existir uma que realmente não interessaria, de todo, a ninguém. Engoliu em seco e prometeu-lhe que ficaria tudo bem. Ela recordou-lhe o disparate daqueles arco-íris infantis que as pessoas botavam nas janelas durante o pico da pandemia e ele amou-a um pouco mais que o costume e por pouco chegou a acreditar que debaixo do sofá não haveria trocos perdidos e cotão abundante e o diabo a sete.

"E vem aí mais sorte", dizia-lhe ela toda escangalhada. Isso poderia ser bom, segundo a Madalena das canadianas. - "Nunca mais te irás esquecer destas noites, sabes porquê?" - Ele encolheu os ombros. - "Deixo-te a casa de banho da suite só para ti, porque sei que nunca te habituarás a partilhar uma sanita, quanto mais um espelho..." - Ele baixou os olhos e ela sabia bem que esse gesto era uma admissão. Assim que, ao Senhor Barbosa, e isto porque sempre andou desfasado com as mudanças da Lua e com os cheiros íntimos de outros, o sono não viria fácil nas noites futuras, porém, essa sua condição não chegara com a felicidade do amor, vinha de longe como o Constantino. O que esperava o Senhor Barbosa era uma rotina de vingança mais dura que a do costume. Só contrariados é que poderiam ambos ser felizes. Ela sumia-se na magreza de um corpo que insistia em desaparecer da sua frente. Ele engordava paulatinamente de retorno à bebida. Entretanto, ela atingia-o onde e quando podia, ele aguentava e resguardava-se defronte ao seu mundo. Ela espetava-lhe as muletas em frente aos olhos e via-se bem que as cuecas quase lhe caíam pelos joelhos de tanta largueza. Ele, desengrenava tudo o que lhe arreliava e punha-se à janela, mais e mais, como uma estátua de sal.

Em finais de Outubro, a Patusca parecia ter atingido os seus limites, e mesmo correndo o risco de lhe fazer soar todos os alarmes fez uma mala completa de saída. O medo acordava muitas incertezas, a Lua não parava de surgir cheia e o quarto, onde ficava a casa-de-banho que já lhe oferecera de mão beijada, era agora só dele. Como se ela não soubesse já que ele dormia no sofá da sala desde 2002. Por fim, no dia dezassete tudo se culminou com uma bateria de micro-enfartes que o atiraram para uma cama de hospital.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

Acerca de Anderson's...

Hollywood é um gigantesco cadinho demente de fumos e fogos fátuos. Ali se fundem todos os sonhos e pesadelos possíveis de se imaginar.  Senão, atentem, como mero exercício, neste trio de realizadores, que, por falta de melhor expressão que defina o interesse ou a natureza relevante deste post, decidi chamar-lhes apenas de os " Anderson's ". Cada um mais díspar que o outro, e contudo, todos " Anderson's ", e abundantemente prolíficos e criativos dentro dos seus géneros. Acho fascinante, daí querer escrever sobre eles e, no mais comum torpe da embriaguez, tentar encontrar alguma similitude entre eles, além do apelido; " Anderson ". Começarei por ordem prima de grandeza, na minha opinião, e é esta que para aqui interessa, não fosse este um blogue intrinsecamente pessoal onde explano tudo e mais qualquer coisa que me apeteça. Sendo assim, a ordem será do melhor para o pior destes " Anderson's ".  O melhor : Wes Anderson .  O do meio : Pau...

O discurso do Corvo.

Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu, voo ao acaso, sem saber por quem voar, por sobre rostos de carne, palha e infinito. Trago as mãos feitas num espesso breu, toldadas pela sede de te possuir e de te dar, o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito. As palavras, quando são poucas, sabem melhor, dizem tudo melhor, se forem poupadas. Abre os braços então, e recebe-as em teu seio, a secura desta terra já consome o sangue do meu terror. Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas, disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio. De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes, continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve. Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder, Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes, desta paixão que é dada, e que não se devolve, e que é minha e tua, porque assim tinha de ser! Casimiro Teixeira 2012