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A noite em que o Rodrigo Leão me deitou farpas dos olhos.

Gosto muito do Rodrigo Leão, sobretudo por estar na génese de duas das bandas mais experimentais, geniais e bem sucedidas que tive o prazer de ouvir e amar nos últimos 40 anos: Sétima Legião e Madredeus.

É bem verdade que também os seus trabalhos a solo, a partir de 1995, me têm muito entusiasmado, pela criatividade e diversidade instrumentativa. Foram novas sonoridades minimalistas que romperam barreiras, que não hajam dúvidas aqui. O homem é um virtuoso, e toda a glória lhe seja merecida por aquilo que vem fazendo aqui e além-fronteiras. Ressalvo o seu projecto "Cinema" como um marco da música colaborativa, e falo de parcerias com gigantes como Beth Gibbons (Portishead) e Ryuchi Sakamoto. Tudo isto poderão apreender na sua extensa biografia na wikipédia. O que pretendo realmente ressalvar é que, adoro-o, sim, tenho uma fraqueza de fã pelo Rodrigo Leão, daquelas de quase desfalecimento, mas ele, por seu turno, e mesmo sem o saber, detesta-me!

Eu explico: há aqui uma pequena estória, mais um 'fait-diver' essencialmente, muito embora, nada tenha sido noticiado em canais oficiais, visto tratar-se de mim em particular e pouco ou nada sobre o Rodrigo Leão.

Aqui há uns anos, passávamos, eu e a família, um maravilhoso fim-de-semana de evasão na bela Ericeira. Admito ter sido um daqueles intervalos que ficam retidos na memória para sempre. Durante esse período, e na noite de sábado para Domingo, após o jantar intrinsecamente bem acompanhado por duas ou três garrafas de vinho, saímos pelas ruas a celebrar a vida em comum e a felicidade (muito rara) de nos sentirmos tão uníssonos em família. Procurava-mos um bar a mor de prosseguir essa graça de nos sentirmos assim e foi então que me deparei com um Rodrigo Leão pessoa, em plena rua, caminhando determinado a caminho de qualquer lugar, em um espaço aberto, onde só nos encontrávamos nós, e ele.

Aqui, talvez seja pertinente referir que o meu filho, ali presente, também se chama Rodrigo, e, de imediato a minha cabeça purgou uma partida de pouca monta. No espaço de vinte passos que nos dividia a pequena praça gritei alto: "Rodrigo!". Fi-lo várias vezes, e ele, obviamente, virou a sua atenção na direcção do chamamento. Ao fazê-lo, eu inverti as intenções e fiz de conta que chamava o meu filho (que estaria à distância de um braço de mim). Talvez seja escusado reafirmar que não achou, de todo, piada àquilo e lembro-me de ter esbracejado qualquer coisa furiosa de voz por ele dentro, como se nos desejasse a partida para àquela parte que todos conhecemos.

O momento passou-se, ele prosseguiu o seu caminho e deitamo-nos todos em uma risota pegada que mais nos alimentou a franca união daquela noite. Sossegámo-nos e lá intentámos novamente encontrar um bar decente, justamente equilibrado com as preferências de ambas as gerações do nosso grupo. Encontrámo-lo, de facto. Foi à segunda ou terceira tentativa, mas conseguimos. O problema foi que, também lá estava o Rodrigo Leão, e ao se deparar connosco, lembrou-se.



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