Lembro-me muito bem que a minha mãe via sempre o Mal onde, para meus inconvenientes trabalhos, inevitavelmente ele aparecia, onde sempre se ocultara, esse 'mal' que de facto existia, e que o seu coração singular sempre me pareceu feito por medida para detetar. Eram os vizinhos, os parentes desbragados, o senhor da mercearia que cobrava tudo em excesso.
O Mal, jamais me pareceu serem as atitudes erradas das pessoas, mais se assemelhava a um jogo de catequese. A senhora catequista dizia-nos certas coisas sobre o bom deus justo e generoso, e, logo a seguir sussurrava outras coisas muito baixinho sobre o diabo e afins. Na minha cabeça aquilo era um jogo das escondidas. O bem vinha contar até cem, terminava, todo apaixonado pelas pessoas e acendia-se na busca. Dentro do tasco da Dona Evinha, adjacente ao adro, escondia-se o Mal a beber sumol de ananás, sobranceiro na sua altivez. O bem, raramente o encontrava, apesar deste se esconder sempre no mesmo lugar. Parecia-me uma espécie de acordo tácito onde o primeiro se assegurava em perder de propósito, pois sabia exactamente onde estava o Mal, mas, nunca ali entraria para o apanhar. Que mal havia em beber um refrescante sumol de ananás?
O Mal ria-se muito quando aparecia, passados alguns longos minutos, mas por nada, só porque era da sua natureza ser expansivo e pôr-se a rir. Tocava na laje da N.Senhora da Apresentação, lá em cima, no nicho do portal (ninguém conseguia explicar como é que ele chegava lá no alto), era uma vitória certa à qual, o bem, de mãos na cabeça, sempre fazia concessão. Sucedeu-me assistir a isto consistentemente, desde as vésperas da minha primeira comunhão até à altura em que descalcei os sapatos apertados logo após as cerimónias do crisma. A senhora catequista fechava os olhos a tudo, eu não. A senhora catequista tinha umas mamas boas e, lá pelo ano da comunhão solene esqueci tudo sobre o bom deus graças ao seu peito.
Por esta altura, do fundo do adro, já quase na estrada, o Mal espreitou-me e gritou-me lá de longe: já fica prometido ou isso ou nada. - Talvez tivesse percebido que usava de honestidade comigo próprio pela primeira vez. E não estava errado. - Gostei de mamas ali mesmo, entre os bancos corridos da igreja matriz, enquanto o bom deus, já criador, já justiceiro, já redentor, encaminhava a humanidade para o bem, que, por mero acaso, chorava baba e ranho na casa de banho do sacristão bêbado.
Ao chegar a casa, impregnado de seios no diapasão do cérebro, fui incapaz de ocultar esta demanda da minha mãe. Não há outra igual. Estava ali acesa uma fogueira entre sinapses e o seu coração vedor logo a detectou como se uma nascente de tetas me escorresse dos olhos. O Mal, tampouco o bem, me acompanharam até casa, só a normal adolescência, e a minha mãe, sempre fez olhos de mercador a essa. No fim, agora, quase quarenta anos depois, ainda penso no Mal a tocar naquela imagem da virgem integrada, como uma expressão de exuberância, tal como quando fui comprar ao Patusco um Fá de laranja e o espremi inteiro na boca sedenta. Também recordo ainda do olhar da minha mãe quando atirei pelo ar os sapatos apertados que a custo comprou no Varela e que tive de ir recolher sem um pio. Pouco mais terei a dizer sobre as mamas da senhora catequista de tão perfeitas que eram, puras conchas elevadas até ao Céu.
E isto é o que tenho a dizer sobre estes jogos que nos impingiram a todos desde a infância. Esconderam-nos o bem, mostrando-nos o Mal e fizeram de modo a que a verdade fosse o seu inverso. A minha mãe, se ainda fosse viva, teria visto isto a milhas.
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