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As Crónicas do senhor Barbosa XVI

O Senhor Barbosa sabia agora que até os habitantes mais canhestros de Conde Santo podiam triunfar. Claro que era preciso amargar muito, a todo o custo, a todo o custo de qualquer prazer possível, para as coisas chegarem tão longe, mas sabia agora que era possível. Bastava fingir que era. E sabia também que, em Conde Santo, há um exército de fingidores a serem melhores do que ele. Não se demovia de tentar, contudo.

Madalena engomava na cozinhava. O som do vapor do ferro acalmava-o. O aroma da limpeza e decoro da sua casa espraiava-se em seu redor. Ela cantarolava quase assertiva, quase triunfante após o esforço em o domar. Estava iluminada pelo sol radioso, quase, filtrado pela pequena janela da cozinha. Toda aquela luta desunhada porém, deixou marcas, em ambos. Ele voltava à janela quando ela não o via. Madalena emagrecera imenso. Descera de rubicunda a macérrima. Modesta e circunspecta, jamais. Ali estava ela, a imagem conseguida de um quadro Rockwell; um pé nu arqueado, sobreposto sobre o outro, o corpo como que desmaiado, vestido de supermercado, estranho na forma, a escorrer pela parede abaixo, o olhar baço, a seguir o rumo do vapor do ferro, entoado pela canção monocórdica. Em efeito, o fim da utopia a engomar-lhe os boxers.

Lá em baixo, na praça, muitas vezes as pessoas paravam, levantavam a cabeça e observavam vagarosamente a janela, e quando ele olhava para baixo ficava com a impressão de que estes espectadores ocasionais, hordas bizarras de circo, gostavam do que viam. É como se contassem já com aquela imagem dependurada ali, porque alguém dela lhes falou, ou porque sobre ela leram algo em algum lado. Trocavam impressões pelos telemóveis em plena mirada. O Senhor Barbosa, obviamente, que não os quereria decepcionar, e por isso, contrariava-lhe a promessa que lhe fizera, de se afastar da janela que o sugava para a perdição, mas só quando ela não o via. Como, por exemplo agora, que a sabia na cozinha a passar a ferro. - "Um destes Domingos amanhecerás velho e morto. É isso que tu queres, não é?" - Recordou-se - "Sim." - Pensou, entre um sorriso desenvencilhado - "É mesmo isso que desejo. Quem nunca, em alguma vez, em algum fugaz momento da vida, não desejou já acordar morto?"

"Qualquer forma de oposição deve ser considerada tão-somente no quadro da situação geral. Tomá-la como fenómeno isolado significa falsificá-la pela raíz." O Senhor Barbosa leu isto do Marcuse e o Senhor Barbosa compreendia isto muito bem. Muitas vezes, de manhã, na casa-de-banho, gritava a si mesmo ao espelho: "Levanta-te e anda, profundeza." Não sabia concretamente a que profunda terceira pessoa que em si existia se referia, mas insistia muito nisto, logo após Madalena se ter mudado para a sua casa. Era como se pressentisse ali uma luta a advir, insidiosa, incompreensível, ou não - quem sabe? - que, de imediato assumiu como comum a todo e qualquer casal, mais ou menos desajustado, e não apenas e exclusivo a eles: Ulisses Barbosa e Madalena Patusca. O potentado da vida juntos diferenciava-lo da sua individualidade opressiva. Concedia-lhe a oportunidade de ser normal, geral. O Senhor Barbosa desejava tanto a mediocridade, a inclusão, que já nem se preocupava em questionar-lhe o sentido. Aquela mulher, na divisão ao lado, caída em torpor, era a sua grande evasão à excentricidade que sempre o excluíra de tudo e todos. Precisava dela, dos seus pés encavalitados, do seu ar bovino, do seu amor incondicional, como qualquer outro egoísta profissional precisa de, seja o que for, que o aguente nessa danada condição.

E assim se iniciou a nova vida. Por ser intrinsecamente expansiva, como um universo, a sua crónica tudo consumiu. Ainda que parecesse ter sido derrotado, vencido, domado, nunca o Senhor Barbosa sucumbiu à mudança. Ainda agora mesmo alguns o viram como sempre foi; à janela, sem expressão, só a desfiar o seu próprio fim em lassa contemplação, e como ele, engoliu definitivamente a rubrica de quem mais, alguma vez, o amou.

Quem é que quererá ainda continuar a saber sobre isto?

Comentários

  1. Dizia o Marcuse que "A possibilidade de escolha do indíviduo não é o factor decisivo na determinação do seu grau de liberdade, mas sim o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo individuo" o que levado às nossas raízes é como o ditado "filho és, pai serás; assim como fizeres, assim acharás".

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    1. Apeteceu-me revisitar velhos comentários, e, este em particular, diz-me tanto sobre 'quem comenta'. - A expressão que usa: "filho és, pai serás.." explica-me bastante as suas próprias raízes. - Dá-lhe dimensão "Maria Arvore"? E, em um mundo de proximidades ilusórias, mas que é fundamentalmente distante, não serão as pequenas aproximações que nos definem? Acredito que sim. Continuarei a responder-lhe a outros comentários anteriores, pois é, na verdade, o único seguidor assíduo deste blogue, não o posso perder, certo? Até breve, "Maria".

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