Continuação...
No enjoativo largo pendente à entrada da antiga fábrica de sabão, entulhado de latas vazias e frascos empoleirados, dois cães disputavam ferozmente uma carcaça de pão seco. Xavier trocou de pé sem lhes tirar os olhos de cima e seguiu afoito na peugada de uma Doroteia de passo muito determinado. Até hoje, vivera de preencher requerimentos e carimbá-los, sem pressa de nada, neste momento sentia-se o protagonista de uma estranha história que pede adiantamentos à natureza para se manter viva.
Neste mesmo dia, ao acordar, descompôs-se a si próprio em voz alta, como se fosse uma segunda pessoa ali no quarto: "Tu queres que a besta acorde ou não queres? Se queres, não há cá juízos nem dúvidas. Acorda-a."
- Vens ou quê? - incita-o Doroteia, quase adivinhando-lhe os pensamentos. - Pareces parvo!
Apesar de tudo ele fazia grandes esforços para não desistir da sua missão daquela manhã. Porém, o dente estragado a pulsar-lhe uma dor fina na boca, punha-o a milhas dali, em todos os aspectos: "Como esta mulher é vil! Ridícula, repugnante, faz-me tão mal. Nunca imaginei que houvesse gente assim, deste quilate. O que mais me dói é o desconcerto em que ela me põe. Ai, aquele cu quase me cura a infecção."
Ia remoendo isto sem deixar de ratar a gengiva maldita, que alojava o raio do dente, com o cuspo em jacto. Fazia-o constantemente, em impulsos, o que começava a irritá-la.
- Queres parar de fazer esse ruído absurdo?
Mais incomodado ainda, um Xavier de cara chupada, recolhe a cabeça sobre os ombros, e os ombros sobre o corpo e quase desaparece de todo. À sua volta, no curto caminho entre os dois edifícios em ruínas, tudo era como em um cenário de guerra. A rua até dos candeeiros de pé havia sido saqueada, restavam pequenas poças de chuva, aqui e ali, a secarem ao sol pós meio-dia e lixo, que em tempos foram coisas de alguém.
- Aqui não há nada - diz Doroteia. - Vamos ver nas traseiras.
Depararam-se com uma carnificina cega. No pátio jaziam inúmeros corpos de toupeiras em diferentes estados de morte. Umas já se tinham posto esqueletos, enquanto outras iam-se pondo, lentamente, acabadas pelo punho do Adrianito de Pascoais. A que tinha a morte mais fresca ainda a apanharam debaixo da sua mão, terminando-a com um toco afiado de um ramo, pequeno como um pilão.
Nesse preciso instante, Adrianito cai exausto, com um arfar rouco. Depois vira-se e observa-os ali, parados, atónitos. Sorri-lhes enigmático, como quem sabe todos os segredos do mar e que não há mais metafísica no mundo, enquanto lembra: “Não lamentem os mortos. Eles sabem o que fizeram”.
- Merda!
Xavier Poncelo estava como que petrificado.
- Sabe uma coisa? - perguntou Doroteia, sorrindo. E, ante a indecisão do Adrianito, antecipou a resposta: - Aqui o Xavier está convencido de que você é louco.
- Não me digas! - Exclama o velho ainda arfante.
Xavier confirma com a cabeça.
- Não seria surpresa para mim - continua o dos Pascoais - se vier a saber que ele, ou algum como ele, já se tenha lembrado de me mandar para o manicómio. Que sabe esta gente sobre a amizade?
Doroteia assente.
Tem as mãos um pouco suadas, um pouco ensanguentadas, olha para elas um momento apercebendo-se do seu valor. A seguir, com a língua, molha os lábios e põe-se a assobiar uma canção antiga. Doroteia acompanha-o, trauteando a mesma música: "Ai! muitas palavras ocas disseram os exaltados.."
- "..mas tudo acontece na alegria, e tudo termina, assim, em paz." - prossegue o Adrianito.
- O que foi que você fez? - Pergunta Xavier, muito transtornado.
- Todas tinham os olhos levantados para o céu, e assim ficaram, uma fila de bichos cegos atirados para o seu único destino. - responde o velho.
- Olha que prenda - acrescenta Doroteia. - O Plutão ficará feliz de morte quando o souber. - Com modos pachorrentos, acendeu um cigarro e disse: "agora sim, já se pode fumar em paz neste lugar."
- Tens um de sobra aqui para o velho Adrianito?
A rapariga acendeu um segundo cigarro e colocou-lho nos lábios. Sorriam ambos entre as sombras.
- São ambos loucos - replica Xavier, a cabeça ainda enterrada nos ombros, os olhos fixos nas duas figuras ladeadas pelos cadáveres dos pequenos animais - vou mesmo embora, preciso urgentemente de ir a um dentista. Doidos, completamente doidos. Onde me vim meter.
- Oh! - Exclama Doroteia - E eu que pensei que tinhas vindo para fodermos.
FIM
ahahahahahha... Esta história toda - os 3 capítulos - é fantástica ! Uma mulher forte na literatura Mirense!
ResponderEliminarObrigado caro leitor. Reconheço que todos os homens fracos, mas que aparentam força, a procuram em uma mulher que os conduza. Sou um desses homens e intento escrever sobre aquilo que procuro.
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