Avançar para o conteúdo principal

Diz Simão.


Há, perto do pilar da ponte, claros sinais de vida. Uma pequena área antes das casas-de-banho públicas, completamente nas sombras. E, quando não há vento, quase sempre se vêem beatas de cigarro e um restolho amerdalhado inexplicável que aqui se acumula há longos anos. Nem as ocasionais cheias o eliminam. É só o processo natural de entropia da ponte. Um dia desabará, corroída pelo fel da passagem.
O olhar de Cristóvão pousa no rio, mais escuro que aquela sombra perpétua. Os seus pensamentos e o asfalto lodoso debaixo dos pneus da bicicleta escorrem nesse sentido.
Podiam-lhe ter dito o que quer que fosse, que ele ali estaria na mesma, àquela hora, neste lugar. De repente, um peixe: "Que gordo!" - Fala para dentro, como os peixes, se os peixes falassem.
- Se os peixes falassem soariam mudos. Exactamente como um mudo quando tenta falar.
Claro que tinha razão, percebia-se logo, era-lhe importante saber que havia vida na água, como ele a descer o selim da bicicleta no escuro e aquele gato marrom, languidamente a lamber uma pata junto às escadinhas.
- Pensar que este rio está cheio de tainhas. Existem outros, mas este é o principal, cada vez mais. Pode dar cabo dos outros. É uma questão de tempo.
Cristóvão fez exactamente o que prometeu. Verificou a pressão de ar nos pneus, ajustou o selim e o guiador à altura de alguém uns bons três palmos abaixo de si, limpou a lamice do pára-lamas traseiro e o nevoeiro dos espelhos e só depois é que arremessou a bicicleta para o rio.
Uma vez, caiu do telhado da casa dos Socorros-a-náufragos e um aguilhão de pesca espetou-se-lhe nas costas. Ainda lá permanece uma ponta miúda. Desde aí passou a odiar pescadores. Apenas uma sensação estranha que não lhe trouxe grande dor, um mal-estar de somenos, mas, imaginou aquilo em um peixe, a esfacelar-lhe o céu da boca e doeu-lhe sobretudo por isso. Nessa altura chorou mais do que agora, ao perder a bicicleta que já fora do seu avô. Chorou, não por a queda ser um quase fim do mundo, mas sim pela humilhação. Vários pescadores se viraram ao embate e riram e riram. Como dementes ali se puseram ante a sua pequena desgraça, rindo-se às lágrimas. Foi como uma surra que lhe deram sem razão alguma.
- Mas, voltando ao que dizia - continua Cristóvão - Tu és um rei nestas águas. Eu sei que é humilhante ter medo, mas pensa na dádiva da tua força? Nenhum outro peixe deste rio jamais se rirá de ti.
O peixe circulava pelo corpo da bicicleta como se esta fosse um recife. No esteiro da maré vaza, ali jazia meio a descoberto e era como um poema de amor que o homem lhe dedicava. Este põe-se sentado na balaustrada de pedra que divide a terra da água, ombros encolhidos, rosto ensimesmado. Usa um par de sapatos que o atormentam, mas não tem qualquer ferida nos pés, são antes aqueles sapatos que são uma chaga. Atira-os longe irmanados pelos cordões. Há então um breve espadanar na água turva, mais uma prova de vida.
- És um sobrevivente, Simão. Somos os dois. - Um par olhos como ossos brilham acima do negrume escamudo. - O que foi, não gostas de Simão? É um bom nome para um peixe. Olha ali os teus irmãos, roídos de inveja. - A alguns metros emanava um borbulhar vindo das parcas profundezas. - As pessoas dizem que se é livre como um pássaro - assim argumentava - mas também dizem que só farão isto assim ou assado quando virem um peixe a andar de bicicleta. Vês o que quero dizer? És um rei, Simão. O rei Simão. De todos os modos, já pouco importa agora o que as pessoas dizem.
Estica-se um pouco e olha para o espaço aquático a ver se o peixe lá está. Cerca de meio minuto depois volta a vê-lo perto da margem e parece esquecer-se que trazia as meias levantadas sobre a boca das calças, ajustadas a estas. Senta-se novamente, e calmamente descalça-as, uma de cada vez para o lodo. Uma ficou pendurada na manete do travão esquerdo, a outra afundou-se logo. Completamente imóvel, Simão parece absorto nas suas acções. O gato de antes, evadira-se dali nesse instante.
- Convidava-te para uma cerveja - diz Cristóvão - enfim, não sei se gostas de cerveja. Pode ser o que quiseres. Todo o dinheiro que possuo trago-o comigo. - Fala esta parte muito baixinho, porque o côncavo da passagem faz eco de tudo. - Podes pedir o que te apetecer, ok? O pouco que tenho, é tudo teu.
A conversa anima-se com relatos de tempos idos. O homem tira as medidas ao peixe e atira-lhe o casaco. - Emagreci muito desde o que me aconteceu, e este casaco deve ficar-te bem, a mim está-me largo.
O rio ignora as medidas de casaco, de pé, de pernas ou do cu das calças. Tudo lhe cabe, desde garrafas de plástico até ao corpo daquele menino que se afogou em Julho nos redemoinhos. Simão aparece mais ao longe agora, onde a água ainda fazia bom fundo.
- O castigo - prossegue Cristóvão - consiste claro nos desábitos. Isto é que é o pior, pois um homem ao envelhecer acostuma-se a tudo. Não é isso que é ir-se para velho, acostumarmo-nos? Quando era novo saltava de namorada em namorada como uma gazela. Partia vidros às boladas e bebia cerveja às escondidas dos meus pais. Neste momento vejo-me aqui, falo contigo. Não dizes nada? Diz Simão. Diz-me qual é o objecto que mais gostas, dentre os que o rio guarda? Aposto que já sei...espera, não precisas de mo dizer. Eu sei.
Ia Cristóvão continuar o arrazoado da conversa quando sente no pescoço um arrepio: era um casal que atravessava por ali. Tremendo, aguentou o rescaldo da sua vergonha que com estes prosseguiu em um burburinho pela parte das escadas mais altas. Também, todos sabiam, mais não fosse pelo cheiro que aquele sítio era de se evitar. E um pobre robusto que emagreça repentinamente, seria o género de coisa que por ali se veria, naquele ponto razoavelmente insalubre da cidade. A voz de Cristóvão cresce, sobe de tom: "Que atravanquem o mundo de pobres, como o rio a abarrotar de tainhas. Um destes dias isto explode tudo."
De novo ao bojo do quadro do velocípede, Simão, que era bem gordo, como já se havia notado, desajeitadamente serpenteia por ali, quase parecia que lhe tentava chamar a atenção.
- Bem, agora já sabes - insiste o homem, com as mãos quase a tocarem nas vigas da ponte - não tenho nada mais que a roupa do corpo. Perdi tudo, inclusive a minha Goretti que foi a Fátima e nunca retornou. Chorei à parva por dias e dias, sabes? Por ser ingénuo. Vão-me faltando as forças Simão. Já fiz as contas, daqui a duas semanas morro de embolia por pensar tanto nas coisas.
Acto contínuo, e perante a presença inexplicável do peixe, Cristóvão desaperta o cinto, rebenta os botões da camisa e fica prostrado no murete de pedra em nada mais que ossos e um par de cuecas azuis-marinhas. Fica para ali deitado por um bom pedaço, ao tempo exacto da praia-mar. Pobre fantasma sem mundo real onde já se agarre. Viveu dois meses só na ânsia da comida, da bebida, do tabaco. Cada baforada era-lhe o sabor de se sentir vivo, de continuar agarrado ainda às coisas. E da vaidade de perorar nunca se fez.
- Sabes Simão...ainda aí estás? Ah! Sabes, se toda a gente fosse analfabeta, era preciso esperar que alguém inventasse a arte de escrever, até se resolver esse problema. O que seria igual se todos fossem pobres. Teria de vir algum chico-esperto lembrar-se de ser rico. Percebes o que quero dizer? Parece-me que sim, - diz ele. - Mais valia que assim fosse, seriamos todos muito mais felizes. Se ninguém soubesse nada, os que soubessem isso seriam sempre melhores que os outros todos. Assim que, o melhor seria mesmo que fossemos todos pobres, e burros e felizes. Não crês Simão?
O peixe achou mais sábio ingressar no silêncio, pois não tinha respostas para lhe dar.
Horas depois, o casalinho de antes, cheios de um estranho brio e coragem, decidiu regressar pelos mesmos passos de antes, atravessando o negro vão daquela passagem de peões. Antes do fim do curto trecho, já o rio corria largo e caudaloso. Aqui e ali, por mera ocasião, saltava um peixe fora de água, o que não lhes escapou à atenção. Assim como assim, também deram conta da presença de um velho par de roupa interior, pousado sem cerimónia no muro baixo.


Comentários

Enviar um comentário

Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

Três!

  Fui e sempre serei um ' geek '! - Cresci com o universo marvel nas revistas que lia em um quase arrebatamento do espírito em crescimento. O mesmo aconteceu-me com " Star Wars" , e com praticamente todos os bons  franchises que me animassem a vontade.  Quando este universo em particular, ( marvel ), surgiu finalmente em forma de cinema, exultei-me, obviamente. Mais ainda quando tudo se foi compondo em uma determinação de lhe incutir um percurso coordenado e sensato. Aquilo que ficou conhecido como MCU (Marvel Cinematic Universe). A interacção pareceu-me perfeita. Eles faziam os filmes e eu deliciava-me com os mesmos. Isto decorreu pelo que foi denominado por fases. As 4 primeiras atingiram-me os nervos certos e agarraram-me de tal maneira que mormente uma falha aqui ou ali, não me predispus a matar o amor que lhes tive. Foi uma espécie de idílio, até a DISNEY flectir os músculos financeiros que arrebanhou sabe-se lá como, e começar a comprar tudo o que faz um '