Admito que os álbuns de retratos me fazem um pouco de espécie. As fotografias ali tem sempre um certo ar bovino, quase domesticado, irritam-me. Sabe-se de cor a ordem de entrada em cena, e criam uma lógica de tempo e espaço nas nossas vidas que talvez jamais tiveram ou voltem a ter.
Arrumam-se para ali organizados os momentos mais marcantes de uma vida. Mas porquê aqueles? E qual a razão para terem aquela ordem? Cronológica, a ver um grupo de pessoas a envelhecerem em fragmentos de papel "gloss", página a página? Ou pior, álbuns de efemérides? Infindáveis. Todas as vidas nutrem estas composições singulares. Existe um paradoxo pré-ordenado para se angariarem estes instantes, em vez daqueles outros, os passageiros, que, sem que nos apercebamos importam mais que os anteriores.
O casamento da Mi e do Carcará; que magra estava ela naquela altura, linda mesmo, porém, aquilo quiçá era a bicha solitária a comer-lhe por dentro. Mais tarde seria o marido a devorar-lhe a vida inteira. A má sorte pode nascer nos melhores dias de todos nós.
O baptizado do pequeno Heitor Jr. (que raio de nome para se dar a uma criança. Parece já pre-destinado a perder-se nos calcanhares dos Aquiles destemidos deste mundo). A festa de formatura da pré-primária do "Sang-o-ku", que é o nome mascote de algum filho, talvez, ou o prenúncio do fim da civilização ocidental como a conhecemos.
Vomito o tempo todo; O funeral do Adães? Não, não. Que nos funerais não se tiram retratos. Os olhos guardam o mistério silencioso de uma conversa inacabada. E o que calas tu para sempre Adães? - Parecemos perguntar ao morto em forma de fotografia mental. - Homessa! Não se vai agora perguntar em voz alta ao defunto, pois não?
Guardo quase todas as fotografias em várias caixas de sapatos. Afinal de contas, para que servirão estas caixas, senão para isto? Saímos quase sempre das lojas com os sapatos novos já calçados, mas dão-nos aquelas caixas ainda assim. Agradam-me as fotografias estarem caoticamente organizadas, sem idades ou temas, tal como a nossa memória. Umas viradas para cima, outras para baixo (possibilitando a leitura de eventuais datas, legendas e palavras desbotadas no verso).
Aprecio as fotografias estando estas mal dispostas, atiradas seria mais rigoroso, por vários tamanhos e papéis de revelação distintos, por diferentes anos e momentos pendentes de recordação. Compele-nos à descoberta e impede as mãos de as segurarem todas ao mesmo tempo com igual firmeza. Acabam todas escorregadias, ali, naquelas caixas de sapatos, como a nossa memória, são fragmentos de um puzzle incompleto em que cada uma vem tirar importância às outras. Vistas de repente e surgidas nem se sabe de onde, põem o coração a bater mais depressa. São mil vozes que me chamam ao mesmo tempo, pedindo-me para estar embaraçado em uma festa, escondido debaixo de uma mesa, ou de férias em Paris, penteado tremendamente pensativo acerca de um trabalho que só mais tarde viria, e não seria digno de foto. Aquém feliz com os gatos, além distraído a ler, gordo, magro, adolescente e só muito depois bebé. Agora velho em pose dentro de casa, com o penteado ainda fora de moda, bronzeado, a beber Sumol de Ananás, a recusar um sorriso à eternidade, a não conseguir disfarçar um medo, bem acompanhada ou muito só, com pessoas que nunca mais verei ou em sítios onde já nem me lembrava de ter estado, a suspender um pensamento como quem prende a respiração, a não pestanejar um sentimento, a saber que aquela imagem prestes a nascer estava condenada a viver num álbum de fotografias, se não houvesse as tais caixas de sapatos suas guardiãs, de forma quase balbuciante.
A memória ainda consegue me surpreender e o passado pode ser reinventado. O futuro, esse que espere, no cartão de memória digital.
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