Avançar para o conteúdo principal

As Crónicas do senhor Barbosa XVI


Há pouco, de manhã, deparou-se-me a senhora Norberta, a vizinha do 1º esquerdo, e saudou-me levando os olhos ao céu. Tossi de imediato. O raio da gripe!
- Que Inverno! - Disse-me ela após a pausa do cumprimento de cabeça. Fiz o mesmo, para não me estranhar mais do que o costume; "Sim, que Inverno!" - Exclamei elevando um pouco o saco do pão até à tosse, e só depois é que levantei também desajeitadamente os olhos. Aquilo pareceu agradar-lhe, pois sorriu pelo seu caminho descambado adiante.
Era hóspede da irmã mais nova, com rótulo de pensionista, cujo marido se encontrava em situação particularmente vantajosa. A senhora Norberta partira a bacia dois meses depois de perder o marido, três anos após ter perdido o emprego na fábrica das calças. E a frase "parente pobre" que soa tão mal a uma irmã como a qualquer um, nunca a ouvi vir pronunciada desde o andar de baixo. Só que o chibo do marido da irmã, o grandessíssimo senhor engenheiro, conta tudo à vizinhança com interjeições apenas. Mal diz uma palavra completa, aquelas curtas sílabas, têm todas sementes dentro a germinarem mesquinhez acelerada. 
Só mais para o meio da manhã é que notei que a Madalena já tinha começado o seu período de inconstância, isto porque era Domingo, e nestes dias de fim de semana, costumávamos ficar na cama até mais tarde com os pés a aquecerem-se uns nos outros, e nesta manhã não foi assim. 
Ontem chegou a dizer-me: "Quando não estás no pedestal não tens qualquer interesse. Na próxima vez que adoeceres ir-me-ei imediatamente embora." - Ah! Mas que grosseria tão grande para se dizer a um Sábado de tarde. Que completa falta de imaginação. Aposto que a senhora Norberta nunca há de ter dito tal coisa ao seu falecido marido.
- Vem cá alguém visitar-te hoje? - Diz-me ela mal entro em casa com o pão. - Alguém da tua família, quero eu dizer, pois amigos nunca te conheci nenhum.
Recebe-me uma luz viva portanto, que irrompe pela sua traseira e de imediato me cobre por todo. O clarão cega-me por breves instantes e levo o saco do pão aos olhos por mero instinto. Ao mesmo tempo, - e por aqui me apercebo da enormidade volúvel do seu comportamento em gestação - retira-me o saco das mãos e corre para a cozinha toda lavada em lágrimas. Momentos antes ainda a sala estava clara até aos recantos mais distantes, mas agora todas as coisas agiam como se nunca tivessem conhecido senão o crepúsculo. Puxo uma cadeira escura e um fulgor deslizava em torno de suas costas de veludo. Pensei na minha mulher de antes em oposição a esta de agora. Primeiro pensei que antes tinha casado e que agora me tinha juntado, ou antes, tinha sido junto. Depois pensei se isto pesaria em algo para as relações funcionarem, e até se poderia ser de algum modo baliza para uma mulher. Ouvi a chaleira a apitar na cozinha, no tempo justo para lhe abafar o som contínuo do choro. 
Porque choras Madalena? - Pensei também, depois de descartar a hipótese de ser realmente por outra coisa senão por mim. 
A arte de inventar personagens falhou-me aqui por completo. Ponho-me de pé com os braços muito abertos e o olhos no horizonte e esperei que ela pressentisse este abraço em construção desde a cozinha. Os homens têm a mania da prestidigitação e danam-se por isso. Morrem todos os dias um bocadinho por uma ranhura por onde caem sozinhos, quase sempre sozinhos. A Madalena ainda chorava na cozinha porque viu a minha magia um dia e apaixonou-se por ela, agora começa a aperceber-se que todos os homens nascem castrados desse gene maravilhoso que faz as mulheres atirarem-se de cabeça ao amor. - Como vês, tenho de te narrar em sussurros a tua própria vida. Não saberias já que aquele estremecimento todo não passava de um número de circo? - As mulheres morrem de punhais fundos no músculo coração.
- O pequeno-almoço está na mesa. - Grita-me desde aqueles vinte passos de separação ainda com o choro quente pela cara abaixo.
Arrasto-me a tossir até à cozinha. Tossi muito mais do que precisava, pois do que precisava naquele momento era de uma trégua e imaginei que a pena serviria bem para lha despoletar.
- Sabes quem me cumprimentou ainda há pouco? A senhora Norberta. Sabes? Aquela senhora aqui que de baixo que vive com a irmã.
De costas para mim ainda se lhe escutava uns soluços de choro mal acabado. Porém, acalmara-se. A cozinha era uma terra bendita de cessação temporária da dor. Recordei-me de repente de que a verdadeira alegria são os outros, nunca nós. E que ter escolhido viver a minha vida em contramão a este aforismo me despedaçou por inteiro, tornando-me um homem mais velho do que sou, azedo, remoído por rancores antigos e frustrações adormecidas. Ela estava tão bela enfiada naquele pijama azul e pantufas. Prendera o cabelo ao estilo asiático e só me apetecia trazer aquele abraço da sala comigo e dar-lho agora mesmo. - porque não o faço? - Virou-se por fim e sentou-se na minha frente a tomar o seu chá. Os homens também conhecem o amor mas atrapalham-se com ele, sem saber bem merecê-lo, dá-lo ou recebê-lo.
- Madalena, o que tens?
Sabia que a resposta lutava para lhe sair dos lábios, e como a receava ouvir, mas ela só saboreava, pequeno sorvo a pequeno sorvo a razão do meu desconforto deste Domingo.
- Não me respondes, não queres? - Insisti. - Desculpa-me.
- Primeiro, vou acabar o meu pequeno-almoço.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

Acerca de Anderson's...

Hollywood é um gigantesco cadinho demente de fumos e fogos fátuos. Ali se fundem todos os sonhos e pesadelos possíveis de se imaginar.  Senão, atentem, como mero exercício, neste trio de realizadores, que, por falta de melhor expressão que defina o interesse ou a natureza relevante deste post, decidi chamar-lhes apenas de os " Anderson's ". Cada um mais díspar que o outro, e contudo, todos " Anderson's ", e abundantemente prolíficos e criativos dentro dos seus géneros. Acho fascinante, daí querer escrever sobre eles e, no mais comum torpe da embriaguez, tentar encontrar alguma similitude entre eles, além do apelido; " Anderson ". Começarei por ordem prima de grandeza, na minha opinião, e é esta que para aqui interessa, não fosse este um blogue intrinsecamente pessoal onde explano tudo e mais qualquer coisa que me apeteça. Sendo assim, a ordem será do melhor para o pior destes " Anderson's ".  O melhor : Wes Anderson .  O do meio : Pau...

O discurso do Corvo.

Eis-me aqui, ainda integralmente vivo e teu, voo ao acaso, sem saber por quem voar, por sobre rostos de carne, palha e infinito. Trago as mãos feitas num espesso breu, toldadas pela sede de te possuir e de te dar, o ténue silêncio, que é tudo aquilo qu'eu permito. As palavras, quando são poucas, sabem melhor, dizem tudo melhor, se forem poupadas. Abre os braços então, e recebe-as em teu seio, a secura desta terra já consome o sangue do meu terror. Já falei, e agora vou voar num céu de pequenos nadas, disperso no bando obscuro, mesmo lá no meio. De modo que, apesar da lucidez dos meus instantes, continuo sempre algures, no longo espaço que nos envolve. Nada temas destas mãos de cinza que já não tem dedos por onde arder, Eis-me para sempre, nos interstícios perdidos e distantes, desta paixão que é dada, e que não se devolve, e que é minha e tua, porque assim tinha de ser! Casimiro Teixeira 2012