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A rubrica da Madalena Patusca IV


Puxou a colcha mais os lençóis para a frente, levantou-se e acendeu a luz pálida do candeeiro da mesinha. Três palmos ao seu lado, o Senhor Barbosa sonhava com galáxias. Havia-as visto no Sábado no cinema. A temperatura caíra lesta durante a noite e ele apertava-se na colcha almofadada como um filho no colo de uma mãe. O filme continuava-lhe no sonho.
- Tenho de ir trabalhar - murmurou Madalena, e ele retomou a posição inicial de barriga para cima. Mas logo acordou. O dia chegara com as suas vozes de mistério, embrulhadas no mesmo silêncio de sempre, mas agora havia algo diferente a secar-lhe o bafo do sonho.
A janela que se abria para a praça saltava divisões, e no quarto havia uma dupla cortina a bloquear a entrada da luz da manhã. Na mesa-de-cabeceira do seu lado havia um rádio-despertador cujo chinfrim incomodativo só seria devido daí a mais uns quinze minutos. Ulisses Barbosa carregou em um botão, detendo-o e sentou-se na cama a dar pancadinhas no queixo, como se tentasse decidir o que fazer em seguida. Ela entrava e saía da pequena casa-de-banho que despejava uma luz ocre sobre os despojos da noite passada.
De cada vez que aparecia vinha diferente. Um pouco mais vestida, um tanto mais arranjada. Ele abriu os olhos esticando-os com o vigor do espanto. Fitava-a com atenção com uma expressão de bem-aventurança, ainda que incrédulo por ter novamente uma mulher na sua casa.
- Onde puseste aqueles discos de algodão? - Perguntou-lhe.
Ante esta pergunta, que o desconcertou, o Senhor Barbosa perdeu a apatia e abriu os olhos de vez. Olhava-a agora com um misto de indignação e pânico.
- Discos? - Diz ele. - Que discos?
A realidade está cheia de palavras que não praticam a verdade, e aquilo fazia-lhe doer tanto como se lhe serrassem os ossos. - Discos? - Pensava.
- Deixa lá, já os encontrei. Não te levantas, já comecei a preparar o pequeno-almoço?
O seu estômago acusou logo a agressão da pressa. Aquilo era um excesso de zelo amoroso, um cuidar enjoativo. Jamais havia transposto a porta daquele quarto antes das sete. E então veio-lhe novamente aquele súbito e aflitivo pânico de perdê-la. Qualquer coisa de paradoxo visceral muito anterior a este momento. Para o compreender, não lhe bastaria revisitá-lo mil vezes, porquanto ao fazê-lo apenas o tornaria ainda mais equívoco dentro de si.
Madalena fungou e depois riu-se: Supõe, supõe apenas, que nada disto é real - diz-lhe ela colocando-se de joelhos na borda da cama ao seu lado - Imagina que este é o primeiro dia. Só uma suposição, nada mais. Digamos que nada se passou antes disto, entendes? O que farias neste momento? - Madalena reclinara-se, a divina cabeça entre as mãos, o ângulo recto das ancas sobre a cintura do vestido preto aveludado.
Ele replicou de imediato: desculpa, mas não consigo falar como uma pessoa que não sou. Não sou outro qualquer. Se fosse outro qualquer estaríamos ambos na cozinha, vestidos e arranjados, a tomarmos o pequeno-almoço enquanto ouvíamos as notícias antes de sairmos para o trabalho. Aqui e agora só estás a pressionar-me e a encheres as tuas meias de cotão.
- Ulisses, está tudo bem - diz-lhe ela pegando-lhe na mão - não precisas mais de sentir medo. Não precisamos mais os dois de o sentir. Em vez dos mitos e dos santos, das angústias e frustrações, temo-nos um ao outro agora. - Acto contínuo salta da cama e abre as duas cortinas com a cordinha de pérolas permitindo que o Sol o afugentasse de vez do leito protector. Depois seguiu para a cozinha.
Um homem de voz mentolada falava no rádio que ganhara vida. - Mas que raio? - Pensou. Voltou a carregar no botão insistentemente, antes dos próximos quinze minutos. O ruído de uma sangrenta refrega de cães emergia da rua calcetada. Sentado na cama, ensimesmado, o Senhor Barbosa retornava aos velhos hábitos. Assistia a este nó de espinhaços e patas em um torvelinho de uivos que mesmo com a janela fechada se ouviam nitidamente. O frio desenhara cantos nas janelas e havia uma parca névoa branca a cobrir todo o horizonte. A senhora das limpezas de rua, que passava com um trólei de lixo, enxotou-os à vassourada e ele riu-se também.
- Anda cá ver isto.
Madalena estava sentada na mesa da cozinha, a chávena do café perpendicular aos lábios, pensando agora nessa cena horrível que sabia ter de urgentemente corrigir. Abanou a cabeça como se a cena tivesse acontecido a outra pessoa. Fazia-se tarde e um halo de bruma pairava sobre o terreiro maltratado das traseiras do prédio. Todo o prédio era cercado por si mesmo, e Madalena pensou se esta seria realmente uma boa maneira de se viver.
- Anda ver a gente que saiu do metro. É cada um pior que o outro. Madalena? - Gritava-lhe ele do quarto.
Vestiu o casaco e guardou vários objectos na sua mala e saiu. De certa maneira compreendera que era a pena que dele sentira o que a levara a amá-lo, só agora é que começara a acreditar que ela também era merecedora de algum amor, por mais modesto que fosse. Lá fora estava tudo frio.

Comentários

  1. Toda a gente é merecedora de amor. Até as gentes que saiem do Metro.

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