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A Falsa Ilha


Quem se dirige, rumo a nordeste, do extenso lavradio alagadiço para o interior da ilha falsa do Marques Trancão, nota logo a rápida elevação do terreno, oculta de outros pontos de vista, pelo espesso arvoredo e que faz de ponte com o resto do país.
Após vinte minutos bem contados de marcha ao longo de tortuosos caminhos obstruídos por pedras enormes ou escavados em ladeiras escorregadias, com casas de paredões de barro largadas aqui e ali, ao abandono, chega-se à pátria do Trancão, e de quem quer que esteja em dificuldades com a lei.
Gilberto Sidónio, "o pelintra", homem monumental, de espáduas quadradas e sólidas, com passadas elásticas, fez todo o percurso em doze minutos, e ademais carregava em cima da sua bárbara saúde, uma sacola impermeável de lona que quase parecia sua gémea em peso e volume.
O interior sacrossanto da ilha é um baluarte que nasceu do peito de um bastião encaniçado, rodeado por pequenos fossos de água salobra e cães semi-selvagens que vagueiam ao acaso pelos arrabaldes desta cidadela de canas e zinco. Somente os doidos, os desesperados ou ambos, tem a audácia de aqui chegar com ou sem propósito.
O de Gilberto vinha dentro do mochilão e ainda respirava. A crepitação dos movimentos alertou-o de imediato para o despertar do quem ou do quê que fosse que carregava às costas. Desmontou a sacola para o chão e fez surgir uma espingarda de dentro do quebra-vento, fazendo cada coisa no seu devido tempo e em nenhum momento sentindo o mínimo incómodo pela dentição rosnada de dois mastins que se acercaram. Sentiu cheiro a café acabado de fazer, engatilhou a arma e acendeu um cigarro. 
Gilberto, apesar da má-fama tinha um fulgor inusitado de homem-poeta, naquele corpo de gigante inteiriçado, muito embora pouco uso fizesse da sua própria língua para se exprimir. Foi-se arruinando aos poucos, murmurando do hálito da sua boca pequenos segredos aos ouvidos, até perder a fala. Restando-lhe um bloco que usava para comunicar brevemente, palavras fecundas mais perto do sangue do que da tinta.
Os dois cães vinham ao fedor que brotava da lona viva pelo chão, um cheiro que se mexia e que portanto lhes merecia a curiosidade. O olhar de lâminas oxidadas do homem mantinha-os ao largo, mas cada segundo que passava pareciam maiores e borbulhava-lhes uma fúria que se lhes desprendia das bocas. Gilberto Sidónio fincou ainda mais os tacões no chão ensopado, apoiou a culatra com o cotovelo, contra os quadris e depois apertou os dentes preparando-se para pressionar o gatilho, e foi quando se escutou um longo assobio agudo que zuniu pela determinação dos cães e os afastou definitivamente.
- És tu "o pelintra"? - Pergunta-lhe um homem pequeno e magrinho que se aproximava vindo do interior da paliçada. - Imaginei-te mais baixo, mas és tão reles como pensei que fosses. Tens a quem sair.
Gilberto assentiu com a cabeça e colocou uma das tábuas dos pés sob o saco que ali jazia em tribulações, indicando ao que vinha. Atirou fora o cigarro e colheu do bolso um bloco onde de imediato sarrabiscou algo. Entregou-o ao homem.
- Sabes quem sou? - Questiona-o novamente este. Gilberto abana a cabeça afirmativamente. - Sou o Marques Trancão e tu vens a ser o filho do Maldonado, certo? Não te pareces nada com ele. - Gilberto aponta-lhe a folha de papel que lhe passara para a mão para que este a lesse. O que fez.
- Isso pouco me importa. O pobre morreu, percebes? Está morto.
O bom gigante franze o rosto, perplexo e com o pé abana a mochila de lona que estremece. Lança-se a escrever mais qualquer coisa mas é rapidamente interrompido pelo Trancão: - Está morto! Já disse. És atrasado ou fazes-te?
A tremenda mão de Gilberto aperta o cano da espingarda que tinha encostada à sua perna. Os seus olhos faiscavam, mas mostrou devida contenção. Os dois cães de antes estiraram-se à porta da fortaleza e levantaram ambos as cabeças, acção que não passou despercebida aos homens.
- Nunca imaginaria que um 'bandido' como o Maldonado pudesse botar ao mundo alguém assim como tu. Quanto medes, um e noventa, dois e pico?
Gilberto escreve um novo bilhete e entrega-lho.
- "Porquê que não me ofereceu um café?" - Lê o Trancão e depois ri-se desprevenido. - Julgarás estar em alguma colónia de férias, não? Isto não é nenhuma visita social ó "pelintra", tens uma dívida a abater. - Afirma exaltado. - Ou é isto ou tens de me pagar os cem mil que me são devidos. O acordo sempre foi esse.
O primeiro aponta-lhe o saco que parara entretanto de estrebuchar. Marques Trancão principia o processo de enrolar tensamente um cigarro e enquanto o faz põe os olhos intensos e opados, ora em Gilberto, ora no céu que mostrava rumores de tempestade.
- Não tarda nada vai chover. Os meus ossos são como barómetros. Ora, se não te pisgares daqui nos próximos dez minutos, pode ser que não consigas sair daqui por algum tempo. - Passa a língua pelo papel transparente e acende o cigarro, fitando-o demoradamente. - Depois de chover, esta terra passa a ser uma ilha verdadeira, sabes?
O tempo pôs-se suspenso depois dele proferir aquela última frase. Havia ali uma parte dura de memória, que Gilberto recusava deixar para trás. Por outro lado, o 'dono' da ilha falsa, começara lentamente a recuar na direcção da porta o que repentinamente põe os dois cães de retorno à prontidão.
Gilberto Sidónio volta a colocar o pé em cima da longa mochila e observa-a brevemente. Depois, aponta a espingarda engatilhada para Marques Trancão.
- Não dispares, animal. Os meus cães desfazem-te.
O terreiro meio alagado estremeceu com os estampidos, mas Gilberto não soube se foi antes ou depois da comoção enfurecida dos cães correndo em seu alcanço. Apercebeu-se sim, que tinha ainda o pé alongado sobre a lona ensandecida, que disparara três vezes e que ao seu lado esquerdo, em uma ondulação de verme, arrastava-se um dos cães mortalmente ferido, largando um filete de pelo ensanguentado. As nuvens abriram-se no exacto instante do quarto tiro piedoso. A chuva fora um engano somente. Do interior vivo daquela lona a porção de movimentos frenéticos que dela emanava alcançou níveis de puro pânico.
Gilberto, de espingarda em riste, olhou em redor certificando-se de que os tiros não teriam atraído mais alguém que nem soubesse que ali estava, ou outros cães. Só quando se sentiu seguro é que travou a arma e a recolheu ao coldre de ombro, dentro do corta-vento. Tirou o pé de cima do saco e circundou-o a caminho da entrada do abrigo dos bandidos. Entre o canedo levantado que rodeava a casa principal e esta, havia um pequeno trilho ladrilhado com godes e cascas de bivalves. Percorreu-o e apareceu no vão da porta, a casa estava sem tranca. Não havia razão para grandes ferrolhos em tal sítio. Entrou em uma salinha escura entre um silêncio de expectativa. Passou ao lado de quatro cadeiras dispostas em redor de uma mesa coberta com uma toalha de lã, sobre a qual estava pousada, ainda fumegante, uma cafeteira italiana sobre um naco grosseiro de cortiça.
Olhou em redor e prontamente descobriu um armário vertical de portas de vidro onde Marques Trancão guardava a louça. Tirou uma chávena encheu-a com café e respirou fundo. Ouviu latidos distantes e entendeu a urgência do momento.
Após ter tomado o café, procurou a cozinha onde procedeu à lavagem da chávena que utilizara e só depois é que saiu. No caminho de volta, ainda teve tempo de desapertar o nó que fechava o sacão deixando-lhe em cima um bilhete que dizia: "Agora já não te devo nada por me teres feito nascer."






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