Gosto de livros que contenham narradores. Gosto em especial daqueles que invadem os livros a falarem sobre o alfabeto das suas paixões.
Afianço: o narrador (Homem) é o centro das coisas. Nas narrativas que lhe estão subordinadas, é ele quem conhece a razão de tudo, mas, o Homem (narrador) nunca se deixa conhecer na totalidade, e, de modo algum, conhece tudo o que há para se conhecer.
Tudo isto me veio à memória enquanto ouvia Miles Davis. Residente génio da minha pobre aparelhagem micro, que andou sempre escondido às autoridades, aturdido pelas drogas em excesso e pelas paranóias razoáveis e mesmo assim nunca deixou de ser um génio. Quase um anarquista, que consistentemente escapou à vingança da polícia afascizada. Alimenta-me ainda.
Na verdade, tudo isto me veio à memória enquanto ouvia o Miles e me decidi a continuar a escrita do meu último romance impossível de ser publicado por vias normais. (Poderia dizer aqui que é tudo um complot, mas não é, é somente um facto triste dos tempos modernos.)
De alguma maneira, senti que ambos estavam umbilicalmente ligados pelo tronco fundamental. Asfixiados por muitos metros de circunferências determinantes. "A Ausência dos Pássaros" e o "Kind of Blue" caminhavam de mãos dadas na aliteração das mesmas premissas.
- Mas que sacrilégio! Comparar-se ao Miles Davis é de uma arrogância sem travão. Devias ajoelhar-te em milho duro para te redimires pela dor. - Dirão alguns.
E eu respondo-lhes: Que se fodam!
Por exemplo: dois dias depois disto, e enquanto dava o meu passeio matinal, recomendado pelos médicos do meu iminente enfarte, veio-me à memória aquele maldito diabo, que se fez passar por amigo e me destruiu sem saber, e nem ouvia Miles nessa altura, ou pensava nos destinos do Nicolau, só queria absorver um pouco de mar, como quem não vive os dias só pela satisfação de necessidades grosseiras, banalidades que repugnam a quem não nasceu para ser criado de outrem. Mas, ninguém nunca percebe nada direito, nem eu. E, logo me pus a depurar pequenos ódios pelas axilas da inveja. Tudo invenção, claro. Porque os malditos nunca nos permitem viver nos círculos normais. Fazem disso o seu trabalho de vida e insistem e insistem em nos destruir, como o urso devorador no outro lado da porta frágil.
Foi aqui que pensei nos narradores, e na sua força indómita. É de um tormento obsceno, acreditar-se que uma amizade serve, e não é apenas. Que se compõe, que se aproxima de nós até nos lábios e corrói e corrói como o ácido colectivo da escuridão permanente dos pares angustiosos. Pensei, porque o narrador, ao menos, serve o próximo ao narrar a nossa própria fome sem parecer que lá estamos presentes, a morrer, aos poucos. É um artifício, é. Ainda que seja um dos melhores possíveis.
Resigno-me a deitar-me assim. Obrigado a ficar imóvel perante o ofegar da locomotiva da pompa e circunstância. Não estou porém, em um sono tão profundo que não dê para me aperceber do perímetro das tramas em meu redor. A aproximação ao Miles está aqui toda, sem o benefício das drogas pesadas. Poderão também dizer-me que é tão somente a paranóia a apoderar-se de mim. É, e continuará a ser, enquanto não me dêem o valor que mereço.
Não estou mais para ser 'coitadinho', para chorar por chorar. Se choro é porque tenho motivos para isso. E, se me acredito, não estarei já adjudicado pelo espírito do Miles?
O meu sono é leve, é um véu; se quiser, rasgo-o. Considero-me um sinal a mais em um mundo demasiado pequeno para conter tantos sinais. Mas, não me deito mais perante a falsidade de alguns. O Urso não deixa de me bater à porta para me humilhar debaixo das suas patas sujas. E eu repudio-o finalmente. Jamais serei capaz de chamar amigo a um urso que só me quer devorar sem razões aparentes. A um urso que me deveria abraçar por lhe ter cuidado dos 'filhos'. Um urso ingrato que é míope e cruel. - Se sou fraco por isto? Sou. - Apanho-me em dias claros, por vezes. Dias em que se vê nitidamente o Sol e onde se podem divisar terrenos de estevas, cansadamente em uma janela meia opaca, carregada de revérberos prateados. O narrador continua vivo e a dizer o que lhe apetece. É tão linda esta inversão do corpo nas palavras. Não há pompa alguma aqui, só rolos de poeira e um desejo que bordeja a vontade de persistir sempre na corrente do puro Jazz.
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