O meu pai faz anos hoje. Hoje é o Octogésimo sexto aniversário do meu pai. Nada disto é tão trivial quanto vos possa parecer. As pessoas morrem por tudo e por nada hoje em dia, morrem sobretudo de desgosto, o que muitas vezes se encobre por doenças misteriosas e males indefinidos, outras, muitas mais vezes, permitimo-las chamar apenas de cancro e se revestem todas de vidas generalizadas onde um mal terrível que parece quase impossível de levar a justo combate nos termina sem própria justificação.
A minha mãe morreu em 2005 com um cancro no pâncreas, é um facto comensurável pela imensidão da sua falta medonha, a sua ausência na mesa do bolo de aniversário, do seu sorriso da alegria familiar inteira, na vastidão tremenda da exactidão malograda da sua perda ridícula. A minha mãe era um suporte basilar, o meu pai um homem da manutenção. Não disse apenas. Porque era assim. E é assim que muitas famílias felizes se constroem. Uma união de mais valias. Mas, o meu pai teve também um outro cancro na próstata dois anos antes, só que lutou não mais do que a minha mãe o fez contra o mistério sinistro de um orgão tão obscuro quanto letal, e ele sobreviveu e a minha mãe não. A culpa nunca é dos órgãos, ou das pessoas que os sustêm no corpo. A culpa é da indefinição das sortes. E daí que, hoje quis a sorte, celebrar os oitenta e seis anos de um pai bondoso que ainda consegue chorar pela reunião de família adjudicada ao seu aniversário. É um feito de estrelas brilhantes e unicórnios mirabolantes. É um abraço inteiro em execução. Em efeito, é algo digno de celebração, contrário a muitas coisas que nunca o serão e mesmo assim acontecem dessa exacta maneira.
O Manuel Teixeira hoje faz anos. É uma alegria invulgar cantar-se os parabéns a um sobrevivente tenaz que ainda por cima se ama incondicionalmente.
Sobretudo quando é um pai, que faz oitenta e seis anos e consegue ainda reunir quatorze pessoas da sua própria carne progenitora que querem de facto ali estar, a celebrá-lo, a mimá-lo com todas as possíveis maravilhas dignas de se dedicarem a um pai, avô, bisavô que chegou a esta tão longa idade.
O que poderá isto significar? Que o meu pai é mais forte do que foi a minha mãe? Não, não é. Nunca foi. Tão somente a narrativa da minha mãe tinha de terminar quando terminou e a do meu pai não. Isto não o faz menos pai do que a minha mãe foi forte o suficiente para manter esta família unida ao ponto de agora estarmos aqui a celebrar-lhe os oitenta e seis anos, com essa mesma força indomável com que a nossa mãe e avó nos legou.
O meu pai continua a ser o "Crica" supremo desta família inteira de "cricas" transparentes, que só choram em público pelas generalidades massivas do amor comum, com medo de se verem ao espelho em privado, chorando por aquilo que os aflige individualmente. É provável que tudo seja errado. Quem pode saber sobre estes desígnios misteriosos? E que as pessoas deveriam chorar mais em conjunto, para se abraçarem e beijarem e tirarem fotografias em conjunto e se amarem tanto que parece quase improvável nestes tempos de despojamento assumido, que um grupo de quatorze pessoas tão distintas, ainda se reunam para celebrarem um Homem que é a matriz de todos. É qualquer coisa de maravilhoso isto, eu acho. Algo demasiado bonito para nos entregarmos à ironia ou ao desalento inexorável que nos tolhe diariamente.
O meu pai fez oitenta e seis anos hoje. O Manuel "Celeiro" celebrou mais um aniversário e todos nós, os que o amamos sempre e ainda, ficámos felizes por continuarmos a tê-lo a nosso lado. E, a minha mãe sorri algures, porque sabe que fez um bom trabalho.
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