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Elegia para um caixão vazio



(Título roubado ao Baptista-Bastos)


Quando eu morrer, quantas pessoas assistirão ao meu funeral? Dez ou quinze, a família e os amigos ou uma pequena multidão carpideira? - Ainda não conheci ninguém que intimamente não fizesse este auto-julgamento pré-morte. - Talvez seja de alguma estranheza, relacionar-me com pessoas assaz mórbidas e egocêntricas para pensarem nisto, ou quiçá seja eu que projecto estas ideias e depois digo que foram outras pessoas que as comentaram.
Quantas pessoas me amaram, e quantas dirão que fui boa pessoa? Quantas me elogiarão o trabalho e quais serão aquelas que inevitavelmente irão dizer, em sussurros, que: "ele nada fez para conseguir aquilo que queria. Quedou-se e esperou as oportunidades. Não sabia que as oportunidades nunca nos batem à porta? Era uma morte anunciada."
Não, não sabia. É que bater em portas, lembra-me os Natais da minha infância e não posso deixar de me emocionar apenas. O meu pai costumava fazer-se passar pelo pai natal e antes dizia-nos sempre que aquelas caixas por baixo do pinheiro estavam vazias, era preciso que evacuássemos a sala para dar espaço à chegada do trabalho do velho Simeão. Nós saíamos, claro, e enquanto cuidávamos das nossas ânsias sentíamos no coração o recado de que era o pai quem enchia aquelas caixas, fossem estas de que tamanho fossem, e que talvez tivesse firmado algum acordo com o pai natal para este não se cansar tanto com aquele rol imenso de casas por fazer. Quando tudo estava pronto, ele batia à porta e nós entrávamos. A noite explodia.
A mãe sorria pelo ano inteiro e agarrava-nos nas mãos que não queriam quietude, somente o frenesi da melhor noite de todas. Depois soltava os potros inquietos para dentro do Natal e sorria mais ainda.
Falava-nos como se estivesse a dirigir-se a um numeroso público, e éramos só quatro, sendo que dois já quase eram adultos. Naquelas noites, os meus pais poderiam ter dez, vinte ou quarenta anos, cada palavra que nos dirigiam eram uma catapulta directa às borboletas no estômago. Nunca lhes percebíamos a linguagem naquelas noites. O tom era oratório mas os nossos corações só nos saltavam do peito deixando-nos surdos de ansiedade. A mãe vagueava pelo círculo, já cheia de rugas que se dissipavam aos instantes imediatos de cada sorriso nosso, interpelando um ora outro, sobre o que gostaríamos de receber. Os seus monótonos trabalhos diários, a agitação constante e incompreensível da invectiva dura de nos provir dissipava-se completamente e eram só risos e abraços e saltos frenéticos que existiam. Em parte sabíamos bem sobre o simbolismo do presente. No geral aconchegava-nos mais o amor enorme da ocasião do que isso, o material. 
Eu queria uma caixa de Legos, assim assim, o meu irmão Tó, uma bicicleta de mudanças. A minha irmã esperava receber um vestido que precisava para confundir de amores o namorado e o mais velho, o Carlos, era sempre o melhor de nós todos. Só nos queria ver assim. Exactamente assim. Sorrisos de saltimbancos.
Depois veio um salto pior e a minha mãe, cujo aniversário coincidia com o do menino Jesus, morreu, assaltada por um daqueles males que só corroem o corpo e nada explicam de concreto, nada deixam de razão. Foi-se em Março mas esse ano teve um Natal também e lembramo-nos todos da multidão no seu enterro, como se aquele evento grandioso de comunhão e reconhecimento nos pudesse apagar a tristeza de não a termos ali à mesa, a segurar-nos mais os entusiasmos, enquanto o meu pai fingia a alegria mais triste de que me lembro.
A minha mãe, não era ninguém além da Adelina Felicidade; mulher, mãe de quatro, serventuário de limpeza, e contudo ouvi tanto sobre ela que desconhecia da boca de estranhos. Tanto amor que espalhou sem querer por este pequeno espaço que é a nossa terra. Pôs-nos todos a pensar: o que dirão também sobre nós no dia em que formos levados ao nosso último destino? Todos os meus irmãos querem ser enterrados, eu quero ser cremado. Não importa tanto pois estaremos mortos, mas, não consigo deixar de pensar nisto. Será que acabarei sozinho e em cinzas no meu último dia de memórias? Só espero respeitar a imensa herança da minha mãe. O melhor quiçá será anular-me e não me esforçar tanto para que me lembrem por aquilo que agora acredito que nunca me lembrarão. Os meus irmãos assentem, sem nada dizer e o meu pai mandou lavar a seco o gorro de pai natal para o dia 24.


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