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As Crónicas do senhor Barbosa XV


Tenho direito às minhas ideias embora não tenha direito à minha vida.
- Sim meu amor - confabula o Senhor Barbosa de olhos postos na chuva - aquele que só se interessa pelas coisas que os outros desprezam, não tem grandes direitos. Os memoráveis momentos da minha vida foram todos poesia, cheios de vibração e delírio. Gigantes, todos eles. Mas sabes também, nenhum desses momentos foram meus. Eu não existo Madalena. São onze horas da manhã e nem me deitei, nem dormi. Ando fatigadíssimo e dói-me algo importante cá dentro. Apalpo-me todos os dias e faço exames minuciosos ao espelho. As minhas mãos não param. Logo eu que detesto espelhos. Creio que todas as funções do meu corpo continuam a trabalhar compensadas, não noto manchas ou inchaços. Havia um caroço duro na parte de baixo da bochecha esquerda, mas vim a saber que era apenas um pequeno depósito de gordura. Talvez me masturbe mais do que deveria. Porque ainda não fizemos o Amor? Li em um livro que o Amor nos liberta do egoísmo. Madalena? - Sim, eu sei.
Tusso muito mas isso é por minha culpa. Tenho a barriga dilatada, todo eu estou inchado por demais. Nos filmes nunca nos explicaram que aquela prática tão elegante de se beber perante a tristeza nos conduziria a este estado insuflado horrendo. São todos sempre tão bonitos e fortes e cheios de uma boa angústia, daquelas que só cabem tão bem no cinema, sabes? Os dias em que os olhos não me explodem em raios vermelhos são bons, suponho. Na Quarta-feira pelas três da tarde quase que senti gratidão. Não é assim tão trágico, por vezes o corpo dói-nos por não nos mexermos e não dormirmos. Sinto tudo. Sinto todos a falarem do nosso amor sem dizerem nada de bom. Todos comentam a minha inexistência. Far-me-á isto existir? Não sei, e só penso nisto. Onde estivemos ontem, no feriado ou na Terça-feira passada. Que filme vimos no cinema e porque um homem de aspecto tão pouco viril, cheio de palavras se enquadra apenas na vidraça de uma janela sem intentar ir mais além. - Onde estás neste momento meu amor? Vem levantar-me do chão. - Tossi imenso uma larga porção desta manhã e depois só me apeteceu voltar a beber para me lembrar que não te mereço. E bebi e mesmo assim não consegui adormecer no sofá. De igual modo fui incapaz de perdoar quem fosse. - Sou mau Madalena, não vês? Tenho o coração revestido de maldade e só lhe aguardo o último batimento. - Nas rugas escandidas que o Senhor Barbosa tinha na fronte, transpareciam-lhe todos os caprichos febris em crescendo. O espírito é o que mais se parece ao rosto de Deus, a sua perda enlouquece.
- Disseste-me que querias saber sobre todas as notícias da minha vida. Para quê? O que tu possas dela imaginar decerto que será muito mais admirável do que é realmente. Ai Madalena de tanto encanto, que vieste tu fazer a caminho desta minha vida tão inútil? - Vou lá fora à chuva agora, deambular um pedaço até adormecer ensopado de frio. Mereço isto. Olha aquele rapaz de calças de ganga, trigueiro, a agitar as últimas folhas do Outono daquela árvore. Três semanas antes pensei em uma grinalda e agora assisto a isto, como se as minhas memórias fossem pregos enfiados nos meus sonhos e eu deitando-os fora a todos, na rua, ao vento e à chuva violenta. Mereço esta violência também. Se me queres ver com a cara na lama, olha agora. - Eu sei que não queres.
O melhor é que não me voltes mais a procurar, nem tentes escrever-me dia e noite. Estou acabado. Que tenho eu para te dizer? Sem te ver, talvez continue a acreditar que um dia será possível vir a ser feliz. Vendo-te, só me desespero por te ameaçar constantemente esse amor todo. Sim Madalena, tenho medo. Muito medo. Quando não se tem direito à vida só se pode ter medo de a viver. Ontem sucumbi finalmente e fui à casa de um amigo que me ofereceu de beber e eu recusei. O que poderá isto significar Madalena?
Não tinha chegado ainda o tempo de se socorrer de ninguém para consagrar as ilusões sem nome de que era feito. Ao Senhor Barbosa só lhe apetecia encher o vazio do coração onde cabem todas as promessas do mundo, mas andava tão fatigado que confundiu tudo.
- Não me respondas. Estou a beber neste momento, preciso desesperadamente de dormir.

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