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As Crónicas do Senhor Barbosa XV


Exibia-se um filme do Harold Lloyd, o terceiro génio, na sala quase vazia do cineclube. Na primeira fila da plateia, o Senhor Barbosa sentia-se convalescente das suas emoções. Ao seu lado, mão direita pousada sobre a sua esquerda, Madalena ria sem remorso.
Ao senti-lo naquele estado de quase descrença, ela desvia a atenção do ecrã por instantes e ao seu ouvido explica-lhe a palavra feliz. O Senhor Barbosa quer acreditar que existe no indivíduo um lugar reservado a isso. Podia entrevê-lo além das imagens saltimbancas do preto-e-branco.
Ele também acabou por se rir, e enquanto lhe apertou a mão o coração pareceu todo soltar-se. 
- O Harold Lloyd era um génio de facto. Conseguir desapertar-me o coração às escuras não é tarefa de somenos importância. 
Ela fechou os olhos em honesta satisfação e apertou-lhe também a mão.
De repente, um pequeno burburinho na parte de trás da sala: "Ladrão, ladrão!" - alguém gritava. Logo quase a seguir as imagens da tela empalideceram, e na repentina claridade o Senhor Barbosa sentiu-se descoberto, vulnerável ao escrutínio das poucas pessoas que ali estavam, ainda que só uma o observasse naquele exacto momento. Imediatamente se libertou das mãos dadas e levantou-se. Depois, sentou-se novamente, muito arrependido de o ter feito em primeiro lugar. Deixou-se escorregar pela cadeira almofadada e pôs-se a fitar a tela vazia, o espaço negativo do branco. Se a providência não lhe tivesse sempre inspirado tamanho pavor às pessoas, quiçá conseguisse sair de dentro dos seus medos pelo tempo suficiente para girar o rosto e ver aquela mulher ali ao seu lado, olhando-o como se se tratasse do único homem existente à face da Terra.
Entretanto já a magra multidão se tinha evadido da sala de cinema, perseguindo o aparente ladrão, restando um casal no canto esquerdo da última fila, beijando-se alheios a tal comoção, e um senhor de meia-idade avançada que poderia quase ser seu gémeo, muito incomodado pelo facto do filme ter sido interrompido, que insistia em virar a cabeça para trás, bater com as mãos nos joelhos, fazer interjeições de descontentamento com a língua e repetir tudo isto de novo, várias vezes.
- Queres esperar, pode ser que retomem a projecção do filme daqui a pouco? - Pergunta-lhe ela.
O Senhor Barbosa, por qualquer motivo que não sabia bem explicar, só pensava em figuras épicas expandidas ao segundo na sua cabeça. Cavaleiros e revolucionários a manejarem o ferro e o fogo. 
- A morte está entre nós. Vai ganhando fôlego aos poucos. Tudo se funde e se assemelha. Estou incerto de ter estofo suficiente para isto.
- Isto o quê? - Questiona Madalena.
O zunir do projector levanta-se da pausa e as luzes caem no retorno à normalidade. Também as pessoas se iam movendo entre os intervalos das cadeiras, regressando aos seus lugares. Uma mulher, dentre estes, vinha particularmente agitada, executando ao largo do seu assento uns passos nervosos de pugilista, cheios da mesma elasticidade indecorosa com que ajeitava o apontamento dos seios.
- Queres ir embora? - Prossegue ela.
- Agora, que está tudo bem? Olha, o filme recomeça.

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