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Ano novo, mesmas queixas.


Como sempre imaginei que assim fosse, tudo se resume a mãos dadas, a entregas desprendidas. A um amor primordial, pois. De outro modo como poderei racionalizar que um texto "x" valha mais que outro "y"? - Venham os teóricos patrões desta razão toda e discutam isto. - Não virá ninguém, eu sei.
Escrever é uma bestialidade tremenda que só serve as aflições mais primitivas do ser humano. Em boa verdade, desde a véspera de seja o que for que escreva penso em publicá-lo, e aqui é quando me sinto agitado, mergulhado numa excitação quase juvenil. No dia seguinte, visto-me quase sempre de fraque melodramático. Todos os dias seguintes, são a mais triste festa de passagem de ano que alguma vez passei (e já passei por algumas bem taciturnas).
O pior, é que todos os anos são piores que os anteriores. Tomara que o tempo tivesse parado algures cerca de dois mil e treze. Aí tudo ainda me parecia possível e vivia uma ingenuidade libertadora, propensa ao desejo férreo de jamais deixar de escrever.
Eis senão quando, e sabendo da minha habilidade para as agonias premeditadas que penso sobretudo na finalidade enraizada, a minha e a dos outros e só vejo desencontros. Cada um no seu caminho habitual, estaciona onde o querem e ali fica, imóvel e silencioso a despejar textos, feito uma esfinge que nada pergunta, só responde a entrevistas. E depois pensei em esfinges; quantas terão realmente existido, e poderei eu algum dia tornar-me numa?
A seguir não conseguia tirar o Egipto da cabeça e fui entregar-me a pesquisas extensas. Há que progredir no conhecimento, sempre, mesmo contra todas as adversidades que nos derrubam.
Escrever, pensei em tempos ser uma actividade ligada à prestação desses maravilhosos adjectivos, à partilha em especial, mas, afinal acabei por descobri-lhe só defeitos humanos. Termino-me a derrapar na retórica; a escrita quase nunca me desilude, só quem a faz e publica e agencia é que sim, concluo. 
Aliás, como se pode sequer começar a entender a apreciação de terceiros, se só a quantificarmos? É mesmo triste isto. Porque o desprendimento, a premissa altruísta do ser humano, jamais deveria sequer ser quantificada, quanto muito qualificada. Todos deveriam ter o direito de dizer aquilo que lhes apetece e aguardar uma retribuição coerente e razoável. É só uma conformidade de direito, não acham? - Mas não acontece assim. Taxa-se irrazoavelmente os novos pretendentes com tarifas impossíveis de se conseguir cumprir. O mercado literário tornou-se em um novo feudalismo, e a divisão de classes está claramente expressa nos cânones inatacáveis. Percebi isto rondava o ano de dois mil e quinze. O clarão da minha esperança durou pouco tempo. Todavia não desisti e os dias seguintes prosseguiram-se mais e mais dramáticos. Havia ali um padrão muito exacto que me escapava, escapou-me durante uns anos ainda (é provável que ainda me restasse alguma ingenuidade juvenil oculta dentro de mim).
Estamos a terminar dois mil e dezoito, outra passagem de ano que adivinho a mais penosa de todas e só penso que existem recantos obscuros na internet onde a expressão livre de alguns nunca será lida. E porquê? É muito simples; ninguém quer saber sobre os queixumes de terceiros, ninguém. A malta já tem queixumes próprios em demasia para vir agora aturar os dos outros. Sei até de fonte segura sobre as perguntas desinteressadas e os comentários indiferenciados que fazem alguns senhores especialistas e outros coordenadores-chefe da partilha institucionalizada. É um arado comum que esgalha toda a esperança possível. Sabem bem que ninguém é suposto tocar nas esfinges, são sagradas como as vacas e como os escritores publicados. É tudo tão verdade quanto o esforço dedicado dos que existem e dos que não. O que nunca é verdadeiro é a justiça inteira deste processo elitista. 
E amanhã provavelmente serão editados outros dez mil novos livros, só que nenhum será meu. Bom ano!

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